O acordo fechado ontem pelo governo e o Congresso para tornar o Orçamento viável tem méritos e problemas, e o balanço final entre prós e contras depende da interpretação de cada analista.
Há uma história "boa" do acordo, que provavelmente será empunhada pelo governo, na tentativa de convencer a sociedade e o mercado de que a política fiscal não saiu dos trilhos e que o teto de gastos está mantido.
Mesmo essa visão positiva parte do que pode ser visto como um tropeço do governo: prometer R$ 16,5 bilhões em emendas do relator do Orçamento (além de volume similar de emendas individuais e de bancada), num ano em que, por uma questão da diferença entre o indexador (menor) do teto e o (maior) dediversas transferências federais, o Orçamento já está apertadíssimo.
Por outro lado, pode-se argumentar que a generosidade do Executivo com as emendas foi parte do acerto político que permitiu a pauta econômica avançar com a base aliada do Centrão, em conquistas como o Banco Central autônomo, a PEC Emergencial (aprovada no tempo recorde de uma semana), a manutenção de veto na Lei do Saneamento e a aprovação do novo marco regulatório do setor de gás.
Seja como for, a situação só piorou pós-acordo das emendas de relator. O governo, no Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias, apontou que as despesas obrigatórias de 2021 estavam subestimadas, na proposta orçamentária enviada pelo próprio Executivo, em R$ 17,5 bilhões.
Mas o relator do Orçamento, Marcio Bittar (MDB-AC), não foi oficialmente alertado. Assim, ele não só não levou em conta essa diferença para mais, como reduziu da sua própria cabeça o orçamento de despesas obrigatórias em R$ 26,5 bilhões, sem embasamento técnico adequado.
Criou-se um orçamento "inviável" com rombo de R$ 44 bilhões (17,5+26,5). O buraco se reduz para R$ 36,6 bilhões por causa do adiamento para 2022 de pagamentos de R$ 7,4 bilhões de abono salarial.
Bittar, por sua vez, extrapolou qualquer acordo ao colocar no Orçamento R$ 29 bilhões em emendas de relator, além das emendas individuais e de bancada, que foram espichadas para R$ 22,8 bilhões. No total, as emendas ficaram em quase R$ 52 bilhões.
Executivo e Legislativo gastaram três das quatro semanas que o Bolsonaro tinha para sancionar o Orçamento, depois de aprovado pelo Congresso, antes de chegar a uma solução.
Como explica um experiente especialista em questões fiscais, a solução juridicamente confortável para a equipe econômica seria o veto total ao Orçamento, seguido do envio de um Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) recompondo as despesas obrigatórias e levando as emendas para o nível acordado.
Do ponto de vista do Congresso, porém, essa solução era ruim, pois significava abrir de novo a caixa de Pandora da complexa distribuição de emendas, fruto de muita negociação entre os parlamentares.
A solução do Congresso, temida juridicamente pelo Executivo, era a sanção integral do Orçamento, seguida de um PLN apenas recompondo as obrigatórias. E o Congresso se encarregaria de readequar o Orçamento.
Importância de cumprir acordos
A solução de ontem, algo salomônica, foi a de que Bolsonaro vetará R$ 10,5 bilhões das emendas de relator, levando-as para R$ 18,5 bilhões, próximo dos R$ 16,5 bilhões acertados. E haverá ainda cortes de emendas não obrigatórias e do custeio, num total de aproximadamente R$ 10 bilhões. Com esse ajuste de cerca de R$ 20 bilhões, o Orçamento em tese se torna exequível.
Foi aprovado também o PLN 2, cuja parte mais polêmica foi a liberação, em relação ao teto e ao resultado primário, de gastos relacionados à Covid. Mas o PLN 2 também permitiu o veto parcial do Orçamento, mudando a LDO, e que o Executivo, por meio de decreto (e não projeto de lei), reduza despesas discricionárias para ampliar as obrigatórias.
Na visão favorável, uma das vantagens do acordo foi a de não mexer com as costuras dos compromissos dos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) em termos de emendas parlamentares, nem descumprir o acordo das emendas do relator.
Esse cumprimento de compromissos assumidos entre Executivo e Legislativo é visto por alguns analistas como fundamental para que haja alguma governabilidade no arranjo do governo Bolsonaro apoiado pelo Centrão.
Por outro lado, numa primeira análise (mas ainda a ver), a posição jurídica do governo parece melhor do que com sanção integral postulada anteriormente pelo Congresso.
Em relação à parte fiscal em si do acordo, o analista mencionado tem um visão relativamente benigna. Não é o melhor dos mundos, mas nem de longe significa liberar o governo do ônus de conviver com o teto de gastos.
Nas suas contas, as despesas discricionárias em 2021 estarão num nível não muito maior que R$ 70 bilhões, o menor de longe em termos nominais desde que o Tesouro começou a calcular essa estatística. Há outros cálculos de discricionárias em R$ 80 bilhões, o que não muda o cenário.
"O governo vai cortar na carne, vai entrar no orçamento de vários ministérios, não haverá absolutamente nenhuma folga fiscal", ele aponta.
Mas o PLN 2 também liberou os gastos com os sucedâneos do BEm (programa de manutenção de emprego) e Pronampe (crédito para pequenas empresas), além de despesas de saúde com a Covid, tanto do teto de gastos como do resultado primário.
O analista tampouco considera que isso seja o fim do mundo. Ele lembra que, antes do PLN 2, já dava para fazer uma conta de gastos com a pandemia em 2021 em torno de R$ 100 bilhões juntando auxílio emergencial, BEm, Pronampe e sobras de crédito extraordinário (em parte carimbadas para vacinas) do ano passado.
Assim, o que se fez agora é explicitar algo que já estava no radar. Mesmo que essas despesas não submetidas ao teto cresçam para além dos R$ 100 bilhões, como R$ 120 bilhões, são itens orçados claramente para a situação excepcional da pandemia e temporários.
Uma posição diferente é a de Gabriel de Barros, economista-chefe da RPS Capital e também especialista em contas públicas.
Ele concorda que o acordo foi positivo do ponto de vista político e jurídico (para a equipe econômica). Mas acrescenta que, em termos fiscais, "foi muito ruim".
Barros nota que, diferentemente do auxílio emergencial, orçado em R$ 44 bilhões na PEC Emergencial, o PLN 2 não fixou valores para os gastos com os novos BEm e Pronampe e despesas de saúde ligadas à pandemia. Para ele, isso foi uma derrota da equipe econômica e algo que poderia ter sido feito, com base nos parâmetros dos mesmos tipos de gastos realizados em 2020.
Também preocupa Barros a prática, que vê como crescente, de excetuar despesas do teto e agora, pior ainda, do resultado primário.
Na verdade, auxílio emergencial, BEm, Pronampe e despesas adicionais de saúde com a pandemia ficam de fora do primário em 2021. O primeiro por determinação da PEC Emergencial. Os outros pelo PLN 2.
Melhor que decretar calamidade
"A gente está criando um Frankenstein, e fica cada vez mais difícil para o mercado saber que direção a política fiscal está tomando, prejudicando a transparência das contas públicas. O cristal rachou e agora nós temos uma fragilização não só do teto, mas também da meta de resultado primário", critica o economista.
Em dois pontos, porém, Barros e o analista anteriormente citado concordam. O acordo foi preferível a "apertar o botão da calamidade pública".
"Nesse caso, não haveria limite para as despesas, o cheque em branco seria muito maior", diz Barros.
Outra concordância é que a própria pandemia, que coloca servidores em casa, reduzindo despesas de viagem, energia, segurança etc. pode ajudar o governo a cumprir o apertadíssimo orçamento de despesas discricionárias do ano. Mas ainda assim vai ser na base de sangue, suor e lágrimas.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 20/4/2021, terça-feira.