O mercado de trabalho brasileiro passou por oscilações extremas desde a chegada da Covid-19, no primeiro trimestre de 2020.
Inicialmente, a população ocupada (PO) e a jornada de trabalho caíram, mas a renda - por hora trabalhada, daqui até o fim desta coluna -subiu. Ao final da pandemia, dá-se o contrário: jornada e PO sobem, mas a renda cai. O detalhe é que a renda cai tanto que se chega ao tempo presente com renda salarial média e massa salarial bem menores que no pré-pandemia, mesmo com uma jornada de trabalho um pouco acima.
Segundo dados apresentados pelo economista Daniel Duque, pesquisador associado do Ibre-FGV, no segundo trimestre de 2020, a renda efetiva média real do salário (não inclui benefícios como auxílio emergencial) encontrava-se 14,6% acima do nível do quarto trimestre de 2019, base para toas as comparações que se seguem.
No entanto, como a jornada havia recuado 16,4% e a PO caído 17,1%, a massa salarial apresentava um recuo de 18,9% ante o último trimestre de 2019.
O recuo da jornada nessa fase de maior impacto econômico da pandemia e de quarentenas mais generalizadas deve-se às restrições ao trabalho presencial em geral e, em particular, ao Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm, programa de suspensão e redução de jornada de trabalho, com reposição parcial pelo seguro-desemprego).
Já o aumento da renda nessa fase está ligado ao fato de que, na etapa aguda da quarentena, houve uma espécie de filtragem qualitativa do mercado de trabalho, em parte movida pelas empresas, em parte pelos próprios indivíduos: quanto mais qualificação e renda, maior a propensão a ficar entre os ocupados e na força de trabalho, e vice-versa.
Os números de Duque mostram que a jornada de trabalho se recuperou rapidamente. No terceiro trimestre de 2020, a queda ante o último de 2019 já havia sido reduzida para 2,2%. Nos trimestres subsequentes da pandemia a jornada voltou a ficar muito próxima do final de 2019, tendo aumentado um pouco recentemente, se situando 1,1% acima no quarto trimestre de 2021.
A PO experimentou uma recuperação bem mais gradual. No primeiro trimestre de 2021, ainda estava quase 11% abaixo do último trimestre de 2019. Mas no quarto trimestre de 2021, já estava 0,6% acima daquele nível.
A maior oscilação, porém, ficou por conta da renda média. Já no terceiro trimestre de 2020, a alta ante o final de 2019 tinha sido reduzida para 1,8%. No primeiro trimestre de 2021, a renda real média efetiva crescia 5,3% ante o final de 2019. A partir daí, no entanto, começou a despencar. No quarto trimestre de 2021, a renda média era 11,3% inferior ao de igual período de dois anos antes. A massa salarial estava 9,3% abaixo.
A recuperação da PO parece ter um padrão quase invertido em relação à queda drástica inicial. Estão voltando em maior quantidade os empregos de baixa qualificação e rendimento. A forte presença do trabalho informal na retomada está ligada à esse padrão, mas a PO formal também está se expandindo, sem neutralizar de forma relevante a tendência.
Em termos de política monetária, a massa salarial quase 10% abaixo do período pré-crise (em função da queda da renda), mesmo com a recuperação da PO, é um fato relevante, que pode ser lido como a ausência de uma espiral câmbio-salários. Na crise de 2014-2016, a Selic chegou a 14,25% e os salários demoraram mais a cair.
Será que o ciclo de alta da Selic talvez não precise ser tão mais intenso - isto é, com pico mais elevado e manutenção de taxas muito altas por mais tempo - assim, mesmo diante da nova rodada de choques de oferta com a guerra Rússia-Ucrânia?
Uma questão possivelmente relevante para o Banco Central e o mercado.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 8/3/2021, terça-feira.
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