BRASÍLIA - Uma nova experiência tecnológica nos aeroportos brasileiros, em que o passageiro pode embarcar apenas com a identificação facial - uma 'selfie' -, sem troca de documentos, pode se tornar realidade em breve. Projeto que ganhou ainda mais relevância no contexto de crise sanitária, o embarque com biometria facial tem previsão de ser testado em setembro deste ano no Aeroporto de Florianópolis (SC), em formato piloto.
O programa é idealizado pelo Ministério da Infraestrutura, através da Secretaria Nacional de Aviação Civil (SAC), em parceria com o Serpro, empresa de processamento de dados federal.
"No 'estado da arte', o passageiro passará por todos os componentes do aeroporto sem ter que pegar num documento. Faria tudo com reconhecimento facial", disse ao Estadão/Broadcast o secretário nacional de Aviação Civil, Ronei Glanzmann.
Se o projeto piloto mostrar bons resultados, a expectativa é de que a tecnologia comece a ser usada em mais aeroportos até o início de 2022. Além do terminal em Florianópolis, também já há conversas com os aeroportos de Brasília (DF), Salvador (BA) e Galeão (RJ).
Hoje, as verificações nos aeroportos são feitas basicamente em duas etapas. Uma, para entrar na área de segurança, em que o passageiro valida seu cartão de embarque e depois passa pelas máquinas de raio-x. A outra é no momento do embarque na aeronave, no qual o atendente da empresa aérea verifica o bilhete e um documento de identidade do cliente.
No futuro, quando o embarque por 'selfie' já estiver em funcionamento pleno, essas duas entradas seriam feitas por máquinas de biometria facial, sem que documentos sejam trocados manualmente. O sistema vai cruzar o reconhecimento biométrico da máquina com a selfie feita pelo cliente no momento do check-in - que já pode ser realizado em casa, por exemplo, por meio do celular.
Especialistas e o próprio governo reconhecem que, com a pandemia e as inseguranças trazidas com a doença, a aviação terá de oferecer novas experiências para reconquistar a confiança do passageiro. O setor é um dos mais afetados pela crise do novo coronavírus. Esse cenário, portanto, tornou o embarque livre de contato humano ainda mais interessante. O projeto já é pensado há anos dentro do governo. As discussões foram embaladas pela preparação tecnológica dos aeroportos brasileiros para a Copa do Mundo de 2014.
"Pretendemos que o embarque seja, no futuro, 100% sem contato humano. As pessoas simplesmente apresentam a face, despacham a mala sozinhas, se apresentam nos portões e entram na aeronave sem precisar entregar documento a ninguém. Sem precisar conversar cara a cara, a não ser em casos de exceção", disse o consultor de negócios de Soluções de Gestão de Transporte Terrestre e Aéreo do Serpro, Fernando Paiva. Os cartões de embarque - que hoje podem ser acessados do celular - ainda serão necessários. Mas o "sonho" é poder dispensá-los futuramente.
Além do aspecto sanitário, a segurança e a agilidade são outras duas metas buscadas com o projeto. Os técnicos envolvidos no projeto lembram que, para entrar na "área segura" dos aeroportos, nenhuma verificação de identidade é feita atualmente. Basta que a pessoa apresente o cartão de embarque. "A aviação exige muitas informações por questões de segurança", observou o assessor técnico do Ministério da Infraestrutura, Paulo Possas, para quem o tempo de embarque também será reduzido a partir da tecnologia.
'Ok' do governo
Essa verificação de identidade só será possível com o programa desenvolvido pelo Serpro, que utiliza bases de dados de órgãos federais. A tecnologia já está preparada para comparar a selfie tirada pelo passageiro e a biometria facial com qualquer documento previamente emitido pelo governo federal que contenha foto. Mais à frente, a ideia também é ter acesso aos registros de documentos emitidos pelos Estados.
Na fase de testes do piloto, os técnicos devem utilizar apenas a foto da carteira de motorista do cidadão para fazer a validação. Portanto, quem topar participar, precisará ser maior de idade e habilitado como motorista.
Como a empresa aérea terá de alinhar seus sistemas internos para fazer o embarque por biometria, o governo conversa atualmente com a Latam para que a companhia possa ser parceira no experimento. "Nós já vamos iniciar o trabalho fazendo também comparações biográficas, de dados. Não comparar só a face, mas os dados que estão sendo inseridos no momento, o que garante a confiabilidade de saber que o cidadão é de fato o que está se apresentando", explicou Paiva.
No piloto, a ideia é separar um voo do aeroporto para testar uma série de pontos: se houve redução do tempo, aumento de segurança, como estão as respostas do sistema, e se há gargalos para serem corrigidos, por exemplo. "Precisamos testar para saber se o embarque biométrico vai cumprir requisitos", pontuou Possas. Segundo ele, o projeto - ao propor o cruzamento de bases de dados do governo para garantir a identidade do passageiro - preenche uma "lacuna" de viabilidade da tecnologia e coloca o Brasil numa posição dianteira com relação a outros países.
"Em outros países, o processo de embarque biométrico começa com você apresentando um documento. O projeto aqui é realmente algo inovador, porque a maioria dos países que usam tecnologias como essa têm esse problema que tínhamos e que o Serpro conseguiu resolver, que é a questão da checagem da identidade", disse o assessor técnico da pasta.
Proteção aos dados
O projeto do governo federal para embarque nos aeroportos por biometria facial já nasce "100%" aderente à nova Lei Geral de Proteção de Dados, disse o consultor de negócios de Soluções de Gestão de Transporte Terrestre e Aéreo do Serpro, Fernando Paiva. A legislação foi sancionada em 2018 e entrará em vigor no próximo mês.
Todas as fases do programa - que envolvem a validação da ‘selfie’ e da biometria facial com dados do governo - precisam envolver alto cuidado para proteger a privacidade do cliente. "No longo prazo, quem vai coletar as informações será a empresa aérea. Uma vez que você já está fazendo um negócio com ela, devido as características da nossa lei, a empresa já vai pedir anuência para usar os dados. E nessa anuência já vamos inserir também a necessidade de repasse para validação governamental. Vai ser dentro do fluxo", explicou Paiva.
As novas regras ainda precisarão ser consideradas quando, mais à frente, a tecnologia for alvo de monetização - algo que, por enquanto, ainda é discutido no projeto. Nesse momento de testagem do embarque biométrico, segundo os técnicos, as máquinas serão oferecidas por empresas sem custos - e também sem nenhuma garantia de contratação no futuro.
O próximo passo, portanto, é definir como o programa se tornará viável financeiramente, sem transferir custos ao passageiro. Várias alternativas estão em estudo. Além de uma parceria comercial com empresas privadas, também estão na mesa o uso dos recursos do Fundo Nacional de Aviação Civil (Fnac) e desoneração na outorga (parcela paga pelas concessionárias de aeroporto ao governo). "Ainda não tem a solução fechada", disse o assessor técnico do Ministério da Infraestrutura, Paulo Possas.
Em outra frente, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) faz atualmente um processo de revisão de resolução que estabelece regras sobre a disponibilização de informações de passageiros. A ideia, portanto, é de que o projeto também esteja de acordo com as normas da agência, que está acompanhando desde o princípio seu andamento.
O diretor da ONG Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, avaliou que há uma tendência mundial de se considerar o uso de dados biométricos em larga escala como uma atividade de risco. Por isso, o advogado entende que uma avaliação de impacto de proteção de dados pessoais deve ser realizada para fundamentar o projeto.
A discussão sobre o uso de dados tende a ganhar ainda mais força a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dada em maio, observou Zanatta. A Corte barrou uma medida provisória que obrigava as operadoras de telefonia a cederem dados telefônicos dos consumidores para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com o objetivo de viabilizar pesquisas durante a pandemia do novo coronavírus.
"Foi super importante porque o STF cravou a definição de que a proteção de dados pessoais é um direito fundamental, e que ações governamentais que possam colocar isso em risco - como neste caso, a obrigação do reconhecimento facial em serviços de aeroportos -, que essa imposição tem que ser contrabalanceada com uma série de salvaguardas", disse. Outro caso que pode servir como precedente é o da linha amarela do metrô em São Paulo, no qual a concessionária implantou uma tecnologia de portas interativas digitais que acabou questionada na Justiça.
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