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O outro lado da notícia

Opinião|Lula admitiu que América do Sul ‘não é mais a mesma’. Só falta entender que o Brasil também mudou

Com a vitória de Milei na Argentina, Lula finalmente se deu conta de que, hoje, sua agenda ‘bolivariana’ e ‘antiocidental’ já não é uma unanimidade na região. Mas, no front interno, ele ainda insiste em agir como se o País fosse o mesmo de seus primeiros mandatos

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Atualização:

Decorridos 11 meses desde a sua posse, em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter se dado conta, enfim, de que hoje a realidade política sul-americana é muito diferente da que marcou seus primeiros mandatos, quando governos de esquerda dominavam a região e ele tinha apoio irrestrito para suas ideias “bolivarianas” e antiocidentais.

Com governos de direita e centro-direita no Paraguai e no Uruguai e com o esquerdista chileno Gabriel Boric assumindo uma posição crítica em relação às ditaduras de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua, Lula já deveria ter percebido que os tempos são outros. Mas só agora, com a derrota de seus amigos peronistas e a vitória do libertário Javier Milei na Argentina, a ficha parece finalmente ter caído para ele.

Alheio às mudanças ocorridas no País, Lula tenta implementar a mesma agenda do passado, como se o País tivesse parado no tempo Foto: Wilton Junior

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“(Nós) vamos ter problemas políticos. (A América do Sul) não é mais a mesma de 2002, 2004, 2006″, afirmou o petista logo após a vitória de Milei. “Ao invés de reclamar, temos de ser inteligentes e tentar resolver. Não tenho que gostar do presidente do Chile, da Argentina, da Venezuela. Ele não tem que ser meu amigo. Ele tem que ser presidente do país dele e eu tenho de ser presidente do meu país”, acrescentou, numa rara demonstração de conformismo com os limites impostos à sua atuação por fatores alheios à sua vontade.

Mas, embora tenha admitido que o quadro externo mudou, afetando seus planos para a região, Lula ainda insiste em agir no front interno como se o Brasil ainda fosse o mesmo de suas gestões anteriores. Assim como a América do Sul mudou, o Brasil também passou, de uma forma ou de outra, por transformações significativas desde que ele deixou o Palácio do Planalto, em 2010.

Houve o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que levou às ruas milhões de brasileiros que defendiam sua saída do governo, interrompendo 13 anos de governos do PT. Houve também a Lava Jato, que reforçou o sentimento antipetista na sociedade. Ainda que a operação tenha sido dinamitada pelo STF, permitindo a saída de Lula da prisão e viabilizando sua candidatura à Presidência em 2022, milhões de brasileiros mantêm a convicção de que ele e o PT estavam à frente do petrolão e de outros escândalos de corrupção em escala industrial que prosperaram nos governos petistas.

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A direita, que Lula pretendia “extirpar” da vida política do País, ressurgiu das cinzas, com uma penetração popular inimaginável anos atrás, levando Jair Bolsonaro ao Planalto nas eleições de 2018 e impondo uma derrota inesperada ao “poste” Fernando Haddad, como ele era chamado por seus adversários, hoje ministro da Fazenda. Novos grupos de perfil liberal também se multiplicaram por aí e ganharam espaço na arena política.

Em 2022, mesmo diante de seus disparates e do que muitos analistas consideraram como uma gestão enviesada da campanha pela Justiça Eleitoral, Bolsonaro ainda conseguiu 58,2 milhões de votos (49,1% dos votos válidos). Apesar do frentão que se formou “pela democracia” contra Bolsonaro, com apoio de forças de centro-esquerda, de centro e até de centro-direita, foi por pouco, muito pouco mesmo, que ele não conseguiu se reeleger. Por maior resistência que se tenha a Bolsonaro, trata-se de um fato que não pode ser ignorado pelos analistas realmente interessados em entender os acontecimentos no País.

Acordo com Centrão

Ao mesmo tempo, o Congresso adquiriu um perfil nitidamente mais conservador do que tinha no primeiro e no segundo mandatos de Lula. Embora Lula tenha contado até agora com uma boa dose de apoio de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e tenha firmado um acordo com partidos do Centrão, para tentar conseguir alguma estabilidade política em sua gestão, a aprovação de suas propostas se tornou bem mais complicada do que era antes.

Na semana passada, por exemplo, o Congresso se mobilizou contra uma portaria do governo que restringia o funcionamento do comércio aos domingos e feriados sem aval dos sindicatos e acabou levando ao adiamento da medida para o ano que vem. Agora, está se mobilizando para derrubar vetos do presidente a medidas aprovadas pela Casa, como a prorrogação da desoneração da folha de pagamento para alguns setores da economia.

Lula, porém, parece alheio às mudanças e está tentando implementar a mesma agenda adotada em gestões anteriores do PT, como se o País tivesse parado no tempo e como se ele tivesse sido eleito com uma chapa “puro-sangue”, sem a contribuição decisiva das forças alienígenas que resolveram apoiá-lo achando que, desta vez, seria diferente.

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‘Gasto é vida’

No campo da economia, no qual a resistência de Lula em se adaptar às mudanças se manifesta de forma mais evidente, ele está tentando ressuscitar o mesmo modelo adotado em seu segundo mandato, aprofundado com resultados desastrosos no governo Dilma. A ideia de que “gasto é vida” – que levou Dilma à guilhotina, deixou em frangalhos as finanças públicas, minou a confiança dos investidores e jogou o País na maior recessão da história, com queda acumulada de 7% no PIB (Produto Interno Bruto) em 2015 e 2016 – voltou com força total na atual gestão.

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Como Dilma, Lula pressiona o Banco Central a baixar as taxas de juro de forma artificial, desafiando a autonomia conquistada pela instituição para gerenciar a política monetária e cambial e gerando instabilidade e desconfiança no mercado. Contra a Lei das Estatais, as empresas públicas voltaram a abrigar políticos na direção por conta de uma liminar concedida pelo ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski pouco antes de se aposentar, cujo mérito até agora não foi julgado pelo colegiado da Corte. Neste ano, pela primeira vez desde 2015, último “ano cheio” de Dilma no governo, as estatais devem voltar a dar prejuízo ao Tesouro.

Além de ter paralisado totalmente as privatizações, o governo Lula tentou reverter, sem sucesso, por resistência do Legislativo, o novo marco legal do saneamento, que tornou o setor mais amigável aos investimentos privados. Apesar dos desmentidos oficiais, está em estudos um verdadeiro “revogaço” da reforma trabalhista implementada no governo Temer, com o objetivo de restringir a terceirização das chamadas atividades-fim das empresas e outras medidas de flexibilização nas relações entre empregados e empregadores. Em oposição ao espírito liberalizante da reforma, o governo quer porque quer regular os aplicativos de transporte e entrega, ainda que a maioria dos motoristas e motoqueiros que trabalham na área queira continuar a atuar como empreendedor, sem vínculo empregatício, de acordo com as pesquisas sobre a questão.

Apetite arrecadatório

Embora a carga tributária brasileira já seja uma das mais altas dos países emergentes, Lula 3.0 ainda exibe um apetite arrecadatório sem precedentes no passado recente, para tentar reduzir o rombo fiscal provocado pela gastança governamental, drenando recursos que poderiam ser direcionados pela iniciativa privada a novos investimentos que permitiriam a melhoria da produtividade e da eficiência da economia.

Se, no plano interno, Lula tivesse a mesma perspicácia demonstrada no front externo, ao perceber que as coisas mudaram na América do Sul, e procurasse se adaptar à nova realidade como se mostrou disposto a fazer lá fora, as perspectivas para o Brasil seriam bem mais promissoras. Mas aí, como ele já deixou claro para a turma que “fez o L” em 2022 acreditando que Lula não seria Lula, talvez seja esperar demais do líder petista.

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Opinião por José Fucs

É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/

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