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‘Num ambiente tóxico, a pessoa coloca a culpa na empresa ou no chefe’, diz especialista

Especializada em desenvolvimento humano, Leticia Carneiro ajuda empresas e profissionais em momentos críticos com técnicas de comunicação não violenta e estudos sobre o luto

Foto do author Ludimila Honorato
Por Ludimila Honorato
Atualização:

Processos humanizados no trabalho podem estar até no anúncio de uma demissão. Mais do que isso, a empresa pode ajudar o colaborador a passar por essa fase de luto (aqui no sentido de ruptura) e a encontrar um novo caminho.

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Especializada em desenvolvimento humano, a consultora Letícia Carneiro tem atuado com humanização no trabalho há 13 anos. Publicitária, ela foi executiva em multinacionais por 15 anos até que, em 2009, resolveu buscar um “viver mais simples”, como diz.

Tendo visto o funcionamento das companhias por dentro e começando a explorar as transições de carreira, percebeu que os processos eram desafiadores. Com o novo trabalho, ajudou empresas e profissionais a atravessarem momentos mais críticos, levando empatia e autenticidade.

Especialista em humanização no trabalho, Leticia Carneiro diz que num ambiente onde tem dor, se não tem segurança emocional, a raiva aparece Foto: Rogério Belorio

Como ferramentas, investe em técnicas de dinâmicas em grupo, comunicação não violenta e estudos sobre o luto. A morte do pai em 2017 e do irmão em 2020 despertou o interesse pelo tema e quando levou a discussão para dentro das empresas, percebeu que havia demanda. Luto organizacional e demissão humanizada são alguns dos projetos nos quais ela trabalha.

Em conversa com o Estadão, Letícia conta como aplica esses conceitos e explica que humanização no trabalho vai além das habilidades socioemocionais. Confira alguns trechos:

O que seria o luto organizacional?

Luto é muito relacionado à morte, mas é qualquer ruptura com algo a que estávamos acostumados. Toda mudança gera uma reação natural de adaptação, que é o luto, um processo de mudança que envolve a ruptura de um mundo conhecido. Quando se pensa nesse sentido, tem mudança de chefe, reestruturação, demissão, aposentadoria, fusão. E tem também as perdas pessoais, as mortes mesmo. Com a pandemia, o tema ficou muito perto do mundo do trabalho.

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Como você começou a trabalhar com o tema nas empresas?

Comecei ajudando pessoas em transição de carreira, trabalhando a coragem para mudança. Disso, fui trabalhar com fortalecimento de times, integração, quando tem crise e o time fica muito sentido e fui migrando sem perceber para essa parte do luto. Eu tive perdas pessoais importantes, meu pai em 2017 e meu irmão em 2020, então, para dar conta do meu luto, fui estudar o tema. Até então, estudava comunicação não violenta, coaching, dinâmica de grupos, disciplinas mais afim com a corporação. Mas, para minha surpresa, quando levei o tema do luto para as organizações, comecei a perceber que tem relação muito direta, porque tem muita dor e mudança no mundo das organizações. Trabalhei muito na pandemia, porque as pessoas estavam vulneráveis e precisavam desse olhar.

Como funciona esse trabalho?

É preciso escutar e visibilizar, deixar a pessoa falar sobre o que está causando a dor, senão, isso gera adoecimento. O segundo passo é ajudar a pessoa a tomar consciência do que perdeu, como manter o vínculo contínuo com o que perdeu, que de alguma forma ela honra. O primeiro trabalho que fiz foi um programa de demissão humanizada, iam demitir 30% do time. Fui contratada para, primeiro, treinar os líderes para eles fazerem essa demissão, que seria por videoconferência. Cada líder falou livremente sobre o que estava doendo neles. Depois, preparamos um script que seria de 15 minutos para dar a informação para o funcionário e 45 minutos para acolher a pessoa, escutá-la.

Qual foi o retorno desse trabalho?

Algumas pessoas até agradeceram no final, mesmo sendo demitidas. Elas entendiam que eram cortes por necessidade, e a forma como eram tratadas e cuidadas fazia toda diferença. Depois, fiz uma nova sessão para acolher quem ficou.

É preciso escutar e visibilizar, deixar a pessoa falar sobre o que está causando a dor, senão, isso gera adoecimento”

Leticia Carneiro, especialista em desenvolvimento humano

O que caracteriza uma demissão humanizada?

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Começa por reconhecer que ser mandado embora é um trauma. A gente acolhe a dor e olha as potências, o legado, as construções. É muito interessante ver como esse espaço que se cria, além de a pessoa ficar emocionalmente mais aliviada, reduz a atenção para a organização. Por que, normalmente, em ambiente tóxico, a pessoa coloca a culpa na empresa ou no chefe.

Por que esse acolhimento é importante?

As organizações estão muito acostumadas a trabalhar competências socioemocionais, o que é importante. Mas a humanização do trabalho é a prática de tudo isso para além das competências, porque as pessoas têm um mundo e operam melhor se estão bem, se suas dores estão sendo reconhecidas. Quando uma pessoa está enlutada, pode começar a brigar, e você pode desconfiar: o que essa raiva quer dizer? No ambiente onde tem dor, se não tem segurança emocional, a raiva aparece.

E como se dá o seu trabalho após a demissão ou na transição de carreira?

Uma das coisas que mais vejo é a pessoa não saber responder porque está demitindo. Saber o porquê tem uma função de ajudar o outro a seguir em frente, tem função de previsibilidade, de senso de justiça interna. O ideal é que toda pessoa demitida tivesse acolhimento depois, para proteger a empresa e tornar o processo de demissão menos traumático. O desligamento tradicional é muito focado em apressar a pessoa a arrumar outro emprego, mas as pessoas podem querer mudar de trabalho. A demissão humanizada tem de ter planejamento, deve bater com os feedbacks anteriores, porque, depois de demitida, a pessoa não deveria se surpreender. Outro ponto é conversar com o time que ficou e dar espaço para ele elaborar, porque tem gente que é pega de surpresa e isso gera uma dor.

Como os líderes podem ir além do tratamento que é visto hoje?

É preciso entender duas dimensões: a do erro e da dor. No ambiente com segurança psicológica, tem mais oportunidade de errar, mas o erro gera um luto. A questão é como lidar com o erro, ter esse espaço seguro e, ao mesmo tempo, quando o erro chegar, entender que ele causa dor.

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