Mais de cinco meses após ter sido sancionada, a reforma do ensino médio segue no centro do debate sobre a educação do País. Nem poderia ser diferente. A proposta, aprovada às pressas por meio de medida provisória, deixou muitas dúvidas. Além disso, sua implementação dependerá de ações com prazos diversos, como a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio. Em entrevista a este jornal, o ministro Mendonça Filho demonstra que nem ele tem todas as repostas e que caberá aos Estados resolver problemas da reforma.
Se, por um lado, a falta de clareza e de garantia de participação da comunidade educacional no debate causa preocupação em gestores, professores, pais e alunos; por outro, o processo de implementação em cada Estado pode ser uma oportunidade de corrigir, ou ao menos minimizar, as lacunas e equívocos da reforma.
O governo acerta ao propor a ampliação das atuais 800 horas para pelo menos 1 mil horas anuais, num prazo máximo de cinco anos. A mudança é benéfica ao permitir às escolas mais tempo para trabalhar os conteúdos curriculares previstos na BNCC e também nos percursos formativos específicos.
Preocupa, porém, o impacto da medida para os alunos do ensino médio noturno. De acordo com o Censo Escolar 2016, das 8,1 milhões de matrículas nesta etapa da educação básica no Brasil, 1,8 milhão (22,4%) estudam à noite. Em alguns Estados, esse porcentual beira os 30%. É preciso observar as condições de vida da população jovem que trabalha, realiza cursos técnicos concomitantes ou estagia, garantindo-se maior flexibilidade de horário ou outras formas de complementação da carga horária. Caso contrário, corremos o risco de empurrar ainda mais jovens para fora da escola, ou de criarmos uma pressão ainda maior de demanda pela Educação de Jovens e Adultos.
O texto prevê também a ampliação progressiva da carga horária do ensino médio para 1.400 anuais – o que, num regime de 200 dias letivos, resultaria em sete horas diárias de aula – mas sem prazo de implementação. A Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, instituída pela mesma medida provisória demonstra ser para poucos. Em outubro do ano passado, o MEC apoiou a criação de 266 mil vagas de ensino médio de tempo integral pelos Estados e, em junho, anunciou a apoio à criação de mais 257 mil matrículas. O total de vagas e o ritmo de expansão são ínfimos diante do conjunto da população de jovens no ensino médio e fora dele.
A preocupação aqui é com o aumento das desigualdades educacionais. Apesar de prever que estas vagas se destinarão preferencialmente à população em maior vulnerabilidade socioeconômica, é comum que a dinâmica das próprias redes termine por criar mecanismos velados de seleção e exclusão dos alunos mais pobres das escolas de tempo integral, como aponta pesquisa recente do Cenpec sobre o tema.
Outra preocupação com a ampliação do ensino médio de tempo integral é com a natureza da proposta pedagógica que será adotada. Diversas pesquisas já mostraram que passar mais tempo na escola por si só não garante melhoria da qualidade, se a medida não vier acompanhada de uma abordagem que reconheça o protagonismo juvenil em realização de atividades que vão além do ensino de Português e Matemática, garantindo-se uma visão de desenvolvimento integral que dialogue com as particularidades culturais, sociais e físicas dos sujeitos e dos territórios.
Algumas experiências já desenvolvidas em diferentes Estados são um importante ponto de partida para as redes de ensino que ainda enfrentarão o desafio de estruturar essa política. Um bom exemplo é a rede de Minas Gerais que, desde 2015, realizou uma série de consultas à comunidade escolar que resultaram na inovação das temáticas e linguagens trabalhadas na educação integral, na flexibilização do ensino médio noturno, na criação de uma rede de educação profissional e no fortalecimento da política de Educação de Jovens e Adultos, tudo em consonância com as demandas juvenis. Com isso, conseguiu, em apenas um ano, trazer de volta às salas de aula 114 mil jovens que estavam fora da escola.
A reforma do ensino médio e a ampliação da carga horária só poderão resultar em políticas como essa, se os Estados tiverem muita clareza de que o sucesso do ensino público está ligado à garantia do direito à educação de qualidade com equidade para todos, independente das condições socioeconômicas do aluno e do período em que ele estude. O avanço nessa direção passará, obrigatoriamente, pelo aumento do financiamento da educação, de modo a garantir ampliação das condições de infraestrutura das escolas e valorização dos profissionais da educação, e de um amplo debate com a sociedade e a comunidade escolar.
*WAGNER SANTOS É SOCIÓLOGO, ESPECIALISTA EM JUVENTUDE E COORDENADOR DE PROJETOS DO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO COMUNITÁRIA (CENPEC)
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