Para o francês Philippe Starck, provavelmente o designer mais conhecido do planeta – e isso há pelo menos três décadas –, o design, por si só, não faz mais sentido. “Só a evolução humana me interessa. Durante todos esses anos de trabalho, sempre senti que ajudar neste processo era meu dever absoluto”, declara ele hoje, aos 71 anos, após ter dado vida a mais de dez mil projetos, nas mais diversas áreas e escalas – entre eles, alguns ícones do desenho contemporâneo, hoje parte do acervo de grandes museus. De móveis a espremedores de laranja. De escovas de dente a luminárias. Isso sem considerar os interiores de dezenas de casas, barcos, restaurantes, alguns dos hotéis-butique mais badalados do mundo e até estações espaciais. De fato, é difícil imaginar algum território que tenha ficado imune à sua ânsia criativa. Mas, para Starck, um dos primeiros, ainda nos anos 1980, a se preocupar com a democratização do design, os tempos agora são outros. “Entramos na era da desmaterialização e do bionismo, ou seja, da aliança do corpo com a alta tecnologia”, afirma ele, um pioneiro também em trazer a questão da sustentabilidade, hoje um consenso global, para o centro das discussões. Otimista em relação ao futuro, apesar de bastante preocupado com nossa realidade imediata, nesta entrevista exclusiva ao Estadão, por telefone, de Lisboa, o designer aponta alguns dos desafios globais gerados pela emergência do coronavírus. Comenta também os dias passados em quarentena e alguns de seus projetos recentes – entre eles a Cidade Matarazzo, em construção em São Paulo, e a cadeira A.I., produzida pela Kartell italiana. Bastante entusiasmado, aproveita para apresentar suas impressões sobre o Brasil. País que visitou diversas vezes e pelo qual diz manter uma admiração particular. “Existe uma leveza no povo brasileiro, uma vontade de existir o mínimo possível, de não se impor, que penso ser extremamente elegante”, considera ele.
Como viveu, ou melhor, está vivendo, os dias de quarentena? Pessoalmente, no que se refere à minha vida cotidiana, devo dizer que teve pouca importância. No sentido em que eu normalmente já vivo em quarentena. Na prática, vivo como um monge. Quase não falo a ninguém, quase não vejo ninguém. Me concentro no meu trabalho, que ocupa todo meu dia. No mais, nada me dá mais prazer do que estar em uma cabana e ler. Seja no meio da floresta, na montanha, em meio às dunas. Apesar de todo o infortúnio que esta doença nos trouxe, no meu caso, devo admitir que ela até teve um aspecto positivo: parei de viajar. E, com isso, me vi livre do jet lag, o que me fez um bem enorme. Na verdade, estou convencido do grande mal que viagens longas e constantes podem fazer para a saúde e, sobretudo, para o cérebro. O que não quer dizer que não me sinto afetado pela conjuntura atual e por todas as ameaças globais provocadas pela emergência da pandemia.
E quais são essas ameaças? Antes de mais nada, me entristece o número de pessoas que vão morrer. Muitas vezes devido a uma politização desnecessária do debate, promovida, em escala global, por uma extrema-direita assassina e egoísta. Mas, para além das mortes, existe outra questão que me inquieta. Me parece inacreditável, por exemplo, que muitos ditadores, ou candidatos a, tenham hoje tantos seguidores, em tantos países. E mais. Que eles sejam capazes de politizar uma questão tão vital como a do uso das máscaras e ainda encontrem apoiadores. Além de todo o mal, temo pela perda de liberdade que estas pessoas possam trazer ao mundo.
Certa vez, o senhor afirmou que um dos pilares da sua criatividade é o amor. Continua sendo assim, mesmo em dias tão turbulentos como os nossos? Sem dúvida, permanece sendo um dos meus motores criativos. Ainda mais nos dias em que estamos vivendo, quando percebemos a evidência da inevitabilidade do amor. E não me refiro apenas ao amor romântico, ao amor pelas crianças, ao amor pelos animais. Mas ao amor por tudo e por todos. De uma forma torta, esta pandemia nos fez ver que estamos todos interligados, partilhando o bem e o mal neste pequeno planeta. Corremos juntos os mesmos riscos e o amor, nas suas mais diversas formas, é o único recurso de que dispomos para sobreviver. E, por mais estranho que isso pareça, é ele que hoje está sendo colocado à prova. A escolha é clara: se formos egoístas, desapareceremos totalmente. Se formos altruístas, se amarmos o outro, se o ajudarmos, se o protegermos, estaremos nos protegendo.
Recentemente, o senhor declarou que o design, em si, não mais lhe interessa. Quais seriam seus interesses hoje? Desde o início, o que sempre me interessou foi o ser humano. E me parece impossível falar do humano sem levar em conta que estamos em permanente evolução. Logo, meu dever absoluto é fazer parte deste processo e, na medida do possível, auxiliar nesta trajetória. No meu caso, desenhando produtos mais performáticos, mais úteis. Produtos capazes de atuar em maior simbiose com nossos corpos, de nos oferecer uma “humanidade” ampliada, a partir das novas tecnologias digitais (um dos últimos projetos do designer, por exemplo, o anel Aeklys, conecta seu usuário com o meio externo, substituindo documentos, cartões de pagamento e passagens aéreas). Nos últimos anos, tive a oportunidade de desenvolver trabalhos no espaço sideral, primeiro com a Virgin Galactic (empresa de turismo espacial) e agora com a Axiom Space (empresa privada de exploração) e a Estação Espacial Internacional (ISS), da NASA, o que me colocou em contato com novos e surpreendentes materiais, e posso assegurar que as possibilidades são imensas. Em resumo, eu diria que só me interessa desenvolver o que for realmente útil, porque assim sinto estar fazendo a minha parte. Nesse sentido, que todos façam como puderem seu trabalho. Penso que estamos muito perto de ser inúteis, mas mesmo no nosso nível de inutilidade, devemos tentar ser úteis.
Como foi a experiência de trabalhar com uma inteligência artificial na criação de um móvel como a cadeira A.I., projetada para a Kartell italiana? Na verdade, devo admitir, eu estava um pouco cansado de mim mesmo. Já havia desenhado demais, alguns móveis até bem interessantes, mas, de repente, percebi que sempre fazia a mesma coisa. Olhei ao redor, para o que os outros faziam, e percebi que eles não faziam nada muito melhor do que eu. Ou seja, todos fazíamos a mesma coisa. E isso, no fundo, nem vai mudar a menos que surja uma tecnologia totalmente nova. Foi então que tomei contato com uma empresa norte-americana, a Autodesk, especializada na produção de softwares de engenharia e entretenimento, e juntos imaginamos a ideia de unir as inteligências artificial e humana na criação de uma nova cadeira para a Kartell, empresa italiana líder na produção de móveis de plástico, para a qual desenho há quase quatro décadas. Assim, colocamos para a máquina a seguinte questão: “Inteligência Artificial, você saberia nos dizer qual seria o melhor desenho para descansar nossos corpos usando o mínimo de material e consumindo o mínimo de energia possível?”. A princípio, fiquei preocupado. A pobre máquina parecia totalmente perdida, até que, algum tempo depois, ela teve um “clique” e começou a fornecer como resposta uma forma que, não me envergonho de dizer, me superou. Uma cadeira que não só respondia a todas as minhas solicitações, como ainda se assemelhava a muitas das muitas criações. A ponto de, ainda hoje, muitos me perguntarem se não fui eu que a desenhei. Mas, na verdade, nem foi isso o que mais me surpreendeu. O mais engraçado é que, quando olhamos para ela, a sensação é de estarmos diante de algo extraordinariamente vegetal, o que me levou a pensar que, de fato, quando perguntamos a uma inteligência sem cultura, sem memórias, sem influências, qual é a solução mais econômica para o desenho de um objeto, a resposta sugere uma forma natural. A.I., de qualquer forma, é o primeiro móvel que não foi moldado por nossos cérebros, hábitos e raciocínio e, com isso, um novo mundo se abre para nós. Um mundo ilimitado, onde os objetos poderão ser criados por uma outra inteligência. Não necessariamente superior, mas diferente da nossa.
A Cidade Matarazzo, em São Paulo, é, provavelmente, o maior projeto que o senhor já realizou no Brasil. Gostaria que comentasse o estágio atual da obra e suas impressões sobre o País. É realmente um projeto de grande escala, que deve ser entregue no próximo ano (localizado a uma quadra da Avenida Paulista, dentro do terreno onde ficava a antiga Maternidade Matarazzo, o complexo hoteleiro e residencial do grupo Rosewood Hotels & Resorts contará com uma torre de apartamentos projetada pelo arquiteto Jean Nouvel, além de espaços internos e externos desenhados por Starck). Trata-se, na prática, de um quase ecossistema, imaginado pelo talento visionário de meu amigo, o empresário Alexandre Allard, que, quando estiver concluído, acredito que no final de 2021, terá consumido quinze anos de nossas vidas. Tempo suficiente para eu ampliar meus conhecimentos sobre o Brasil, conhecer o jeito de vocês fazerem as coisas (por exigência de Allard, Starck teve de trabalhar no projeto apenas com materiais e profissionais brasileiros). Dos brasileiros, admiro a paixão, o entusiasmo, mas, sobretudo, a leveza. Uma atitude diante da vida que considero extremamente elegante e que, por certo, se fará presente neste projeto. Allard, que respeita muito meu trabalho, e a quem me sinto muito próximo, costuma dizer que a única coisa que me falta é ser brasileiro. Acho até que ele tem razão. Mas aí já seria felicidade demais (risos).
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.