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Uma alimentação consciente no paraíso da comilança

Saiba mais sobre a Agricultura Biodinâmica, que completa cem anos em 2024 

Por Juliana Carreiro
Atualização:
Horta Biodinâmica, Fazenda dos Bambus, Pardinho - SP  

Sistema centenário de produção agrícola considera as propriedades rurais como organismos vivos e conectados com o sistema solar

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Você já ouviu falar em antroposofia? É uma filosofia de vida que reúne os pensamentos científico, artístico e espiritual e que responde às questões mais profundas do homem moderno sobre si mesmo e sobre suas relações com o universo. Entre as suas principais vertentes, estão a pedagogia Waldorf, a medicina antroposófica, e a agricultura biodinâmica, que é o tema do post de hoje. 

O pai da antroposofia é o austríaco Rudolf Steiner, em 1924 ele ministrou um ciclo de oito palestras na Polônia que originaram esse método sustentável de produção agrícola. Uma das características que diferenciam a agricultura biodinâmica das demais vertentes de agricultura sustentável é a utilização do Calendário Astronômico Agrícola para definir, por exemplo, as melhores datas e horários para o plantio e a colheita dos alimentos.

A entrevista de hoje, que a parte da rede Conexão Solo Vivo é com a Presidente da Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica, Luciana Gomes de Almeida, (na foto) que também é engenheira agrônoma, mestre em horticultura e gestora de projetos de desenvolvimento social e rural através da agroecologia, no campo e na cidade.

-Quais são os princípios da agricultura biodinâmica?  

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L.G.A 

A agricultura biodinâmica tem como princípio básico a estruturação de propriedades rurais como organismos agrícolas cujas partes se inter-relacionam em processos fortemente conectados aos ritmos astronômicos, desenvolvendo sistemas muito autônomos e independentes, à semelhança das florestas e vegetações naturais. Ela se baseia no calendário astronômico agrícola biodinâmico, que considera a influência do Sol, da Lua, dos planetas e das estrelas sobre o desenvolvimento das plantas. O zodíaco é um conjunto de constelações diante das quais a Lua e todos os planetas se movimentam. Ao passarem por cada constelação, são ativadas forças que se traduzem em um efeito na Terra. Durante o processo, a Lua transmite forças cósmicas à Terra e influencia o desenvolvimento dos diferentes seres que a habitam.

Todos os dias, as plantas recebem estímulos que atuam sobre o desenvolvimento de diferentes órgãos e que manifestam efeitos benéficos sobre eles. Em pesquisas realizadas durante vários anos por Maria Thum, discípula de Rudolf Steiner, ela observou um padrão astronômico na semeadura. Quando a Lua está passando pelas doze constelações do zodíaco estimula o bom desenvolvimento de diferentes partes das plantas. Por exemplo, durante as constelações de terra (touro, virgem e capricórnio) são mais estimuladas as raízes, como a cenoura; nas constelações de água (peixes, câncer e escorpião), as folhas e caules, como a couve; nas constelações de ar (gêmeos, libra e aquário), as flores, como o brócolis e nas constelações de fogo (áries, leão e sagitário) os frutos, como o tomate.

É importante ressaltar que o calendário é astronômico. A astronomia se diferencia da astrologia, pois astronômicamente as constelações têm um tamanho distinto e se movimentam no céu, ou seja, a sua influência varia diariamente. Enquanto na astrologia toda constelação tem o mesmo tamanho e são fixas no céu ao longo do ano, ou seja seu efeito não é real.

-Assim como acontece na produção de alimentos orgânicos, a biodinâmica também não utiliza agrotóxicos, mas esta metodologia vai além, como ela encara o local em que os alimentos são produzidos? 

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L.G.A 

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A agricultura biodinâmica acredita que a propriedade é uma individualidade agrícola, que é única e tem as suas particularidades de acordo com o microclima e bioma onde está inserida. Portanto, ela irá respeitar o momento em que aquela propriedade e a família se encontram e buscar um processo de produção que possa levar a evolução e melhoria do solo, da água, das plantas, dos animais e do ser humano ali inserido. Trabalha-se o processo respeitando a cultura local, mas superando crenças limitantes que levariam ao desgaste do sistema. São promovidas e resgatadas práticas agrícolas e culturais através da simbiose, cooperação e religação com as forças da natureza, que levam o sistema a um continuum de abundância e prosperidade

-Como a agricultura biodinâmica substitui os adubos convencionais? 

L.G.A 

Através da promoção da reciclagem dos nutrientes do solo, a partir do cultivo de plantas que vão através da fotossíntese produzir um grande volume de biomassa, que irá alimentar os microrganismos do solo, que farão a reciclagem da matéria orgânica, tornando o solo fértil com nutrientes disponíveis de forma natural para as plantas. Além disso a agricultura biodinâmica conta com o preparados biodinâmicos, que a semelhança da homeopatia, atuam como catalizadores de processos biológicos a baixa energia, que vão estimular a decomposição da matéria orgânica de forma equilibrada, de acordo com o que aquele ambiente, em particular, necessita. É como trazer para o sistema uma sabedoria sutil, uma sensibilidade, onde é disponibilizado aquilo que aquele ambiente necessita naquele momento. Nós chamamos isso de tornar o solo vivo.

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-Quais são as vantagens deste tipo de agricultura para os produtores e para os consumidores?

L.G.A

 A vantagem é consumir um alimento que além de ser livre de agrotóxicos e de todos os prejuízos que este traz a saúde das pessoas e ao meio ambiente, ainda possui vitalidade e a informação de que para ter vida com saúde é importante respeitar os ritmos naturais, ou seja, é um alimento que nos traz também a sabedoria sutil de que temos que ter equilíbrio, beber água na quantidade certa, respeitar o tempo necessário para que os processos se completem, um ritmo de vida que nos permita aproveitar os benefícios do sol, da biodiversidade e da interação com todos os seres da natureza. De repente, você começa a mudar de fast food para slow food, você começa a ouvir mais as pessoas, ter empatia, compreender os processos e, como tudo começa a fluir melhor e naturalmente, os resultados são melhores e contínuos. Dizemos que é um alimento que expande a nossa consciência para uma vida em harmonia com a natureza e todos os seres vivos à nossa volta.

-É possível produzir alimentos em larga escala com esta metodologia? E qual a relação entre a área e a produtividade, é possível produzir mais em um espaço menor?

L.G.A 

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Na natureza, antes de simplificarmos os sistemas, as florestas existiam em larga escala. Fomos derrubando as florestas e simplificando os sistemas, o que resultou na sua fragilidade, levando a erosão do solo e processos de desertificação. Então, podemos construir organismos agrícolas biodinâmicos em qualquer escala, temos exemplos de propriedades biodinâmicas em diferentes biomas em grande escala, como a produção de arroz e uva no Sul, cana de açúcar e grãos no Sudeste e frutas no Nordeste.

Considerando os cultivos solteiros, ou seja, de uma única cultura, a produtividade é igual a da produção convencional. Na minha dissertação de mestrado eu comprovei que a produtividade do tomate orgânico com manejo biodinâmico era igual a produtividade do tomate convencional. Nas propriedades menores, e também nas maiores, podemos aumentar a produtividade através dos consórcios, plantando culturas com diferentes necessidades de luz em diferentes extratos, ou seja, no mesmo espaço podemos cultivar alface, rúcula e couve, por exemplo. Colhemos a rúcula em 30 dias, a alface em 45 dias e a couve em 60 dias, assim quando uma forma e fica pronta para a colheita, a outra está em desenvolvimento, quando colhemos uma abre espaço para a outra se desenvolver... Ao final teremos colhido no mesmo espaço, mas em momentos diferentes, três culturas, ou seja, a produtividade no mesmo lugar triplica!

-A biodinâmica trabalha também com monoculturas?

 L.G.A 

Como a biodinâmica trabalha com processos, ela busca promover ao máximo a biodiversidade para podermos usufruir dos seus benefícios, para aumento da fertilidade e equilíbrio das populações de pragas e seus inimigos naturais. Desta forma, evita-se ao máximo a monocultura. Em pequenas e médias propriedades é mais fácil evitar a monocultura, trabalhando-se sistemas consorciados e/ou agroflorestais. Já em grandes propriedades, o uso de maquinários torna-se indispensável, e neste caso, procura-se trabalhar as culturas em faixas: o sistema agroflorestal é realizado de forma que se tem faixas de um único tipo de cultura entre faixas de plantas nativas que trazem a biodiversidade necessária a para o equilíbrio do sistema. Faz-se também a diversificação no tempo, através da rotação de culturas de famílias diferentes. É obrigatório também o respeito ao código florestal brasileiro, preservando as áreas de preservação permanente, mas normalmente as propriedades biodinâmicas superam em muito o mínimo que o código florestal determina, pois o custo/benefício que a biodiversidade traz é maior para o sistema.

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-Os alimentos biodinâmicos são citados pela Lei dos Orgânicos como uma das vertentes de produção destes alimentos, mas como funciona a certificação, é a mesma para todas as modalidades de agricultura sustentável? 

L.G.A 

A legislação brasileira para produtos orgânicos, possui uma única certificação básica para todos os sistemas de produção de base agroecológica e sustentável. Contudo, o agricultor biodinâmico inicialmente tem a certificação orgânica e poderá ter adicionalmente a certificação Demeter, que é a certificação para sistemas biodinâmicos. Desta forma, ele evidencia o diferencial da sua produção em relação aos outros sistemas de base agroecológica. A diferença é que as normas biodinâmicas exigem um processo de produção mais coerente e religado com os ritmos naturais, como o uso de sementes biodinâmicas e/ou orgânicas e/ou convencionais sem tratamento químico, uso de mudas biodinâmicas e/ou orgânicas, uso dos preparados biodinâmicos e não permite o uso de esterco que seja de sistemas intensivos de criação de animais.

-Existem muitos agricultores brasileiros produzindo alimentos por meio desta metodologia? Onde eles estão localizados, onde comercializam os seus alimentos?

L.G.A

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Temos muitos agricultores certificados biodinâmicos, que embora sejam certificados apenas como orgânicos, realizam o manejo biodinâmico de Norte a Sul do Brasil. Comercializam seus produtos em todos os sistemas de aquisição de alimentos, como: cestas, feiras, supermercados, e-comerce, fazem parte das CSAs (comunidades que sustentam a agricultura) e participam de programas públicos de aquisição de alimentos.

-Como é possível aumentar o número de produtores? Qual é o papel dos diferentes setores da sociedade neste cenário?  

L.G.A

O consumo de alimentos biodinâmicos é a base para o aumento do número de agricultores. Os diferentes setores da sociedade podem se organizar para comprar produtos biodinâmicos de acordo com o volume de consumo. Os consumidores podem se organizar em grupos de consumo responsável ou comunidades que sustentam  agricultura (CSA). Estabelecimentos que compram alimentos, como: hoteis, restaurantes, hospitais e empresas com refeitórios, podem realizar o planejamento da produção antecipado com as associações e cooperativas de agricultores biodinâmicos mais próximos a fim de fortalecer a agricultura local.

-Estas ações também ajudariam a reduzir o preço dos alimentos?

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L.G.A 

A redução de custo de produção envolve consumir aquilo que é produzido com menor esforço e seguindo o fluxo dos processos naturais em um ambiente mais próximo. Ou seja, consumir produtos na época e de acordo com o bioma local, reduz o custo do agricultor pois, além de ter maior produtividade, tem menor necessidade do trabalho de controlar as pragas e as doenças. Além disso, reduzir a cadeia entre a produção e o consumo dos alimentos é sempre mais sustentável, pois reduz o custo do transporte e o consumo de energia não renovável.  

 

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