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'É necessário que se reconheça, no mínimo, a invisibilidade', diz Carolina Ferraz sobre transexuais

Atriz interpreta Glória, uma mulher trans, no longa 'A Glória e a Graça'

Por Anita Efraim
Atualização:
Carolina revela que chegava uma hora e meia antes dos outros atores para fazer a caracterização Foto: Reprodução de cena do filme 'A Glória e a Graça'/ Globo Filmes

O roteiro de A Glória e a Graça chegou às mãos de Carolina Ferraz há quase dez anos, no entanto, o projeto não foi para frente como a equipe previa. A atriz, apaixonada pela personagem que faria, Glória, não quis deixar a oportunidade passar e comprou os direitos do longa. Carolina, além de atuar, foi produtora do filme. 

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"Quando eu li [o roteiro] eu me apaixonei pela Glória, me apaixonei mesmo. Eu queria muito fazer essa personagem e entendia que seria um grande desafio na minha carreira", afirma a atriz. O diferencial da protagonista do longa é que Glória é uma mulher trans.

Apesar de abordar um tema esquecido pelo cinema, a transexualidade, Carolina explica que o objetivo no filme não é político e não pretende levantar bandeiras. "O que eu acho lindo nesse filme é a história de redenção, a história de segundas chances, a história de amor, da família moderna, de afeto", explica a atriz.

O filme, que estreia em todo Brasil na próxima quinta-feira, 30, tem direção de Flávio Tambellini e no elenco tem nomes como Sandra Corveloni e Carol Marra.

Confira a entrevista completa:

Qual a importância de abordar esse assunto, falar sobre pessoas trans?

Eu acho complicado eu falar sobre a importância disso, porque parece que o filme surgiu com alguma proposta política, e não foi. Tanto que a gente quase não conseguiu fazer o longa justamente pelo fato de abordar esse tema. Eu cheguei a escutar de dois executivos: 'Puxa, Carolina, você é tão bonita, tem uma reputação tão boa, uma carreira tão bacana, tem certeza que vai se meter com um personagem desses que não vai ser bom pra você?' Nós nunca pretendemos que esse filme dissesse ou se tornasse de alguma forma uma bandeira. O que eu acho lindo nesse filme é a história de redenção, a história de segundas chances, a história de amor, da família moderna, de afeto, ao que você é leal no seu afeto. E o fato da personagem ser uma travesti só engrandeceu a complexidade dela, a humanidade dela e a minha vontade de interpretá-la.

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Teve um estudo maior em relação a esse papel?

Tive um trabalho sério de pesquisa logo que eu me envolvi com o roteiro, eu colhi muitos depoimentos entre Rio de Janeiro e São Paulo, mas houve um momento em que nós quase desistimos, parecia que não ia acontecer, e eu acabei abandonando tudo isso e só fui retomar o trabalho de preparação dois meses antes do início das filmagens.

Você acha que a Glória é um marco na sua carreira?

Eu não tenho dúvida. Primeiro que eu consegui produzir um longa, olha que loucura, é um marco! Se eu não fosse atriz do filme, já seria um marco, porque eu aprendi tanta coisa com esse projeto, eu me envolvi com tanta gente bacana, fiz tanta coisa diferente. Estou contracenando com a Sandra Corveloni, que eu acho um monstro, uma atriz de uma expressão, de uma grandeza incríveis. Adoro trabalhar com o Flávio Tambellini, já é o segundo projeto que nós temos juntos, acho ele maravilhoso. Eu acho que esse filme é um marco para todos nós, para o Flávio à sua maneira, para os nossos roteiristas, para a Sandra à sua maneira. E eu me considero uma vencedora por ter batalhado e conseguido realizar um projeto, sem dúvida.

Como foi conciliar esses dois trabalhos, de atriz e de produtora?

Na hora que eu entrei no set, eu não era mais produtora. Na hora que nós conseguimos tudo eu virei atriz só, e aí só pensava na Glória, não pensava na produção.

No filme você está bem diferente. Como foi a questão da caracterização?

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Eu tinha acabado de dar à luz, eu estava 20 quilos acima do meu peso. Eu queria descaracterizar o meu sorriso, que eu acho muito característico, então, a gente usou o recurso de uma prótese que deixa o meu dente menor e a gengiva maior, eu usei em cima e embaixo. Maquiagem, que o Marquinhos Freire fez, foi brilhante. Aquela peruca. Eu chegava uma hora e meia antes que todos os atores no set para poder montar. Eu tinha certeza que a caracterização ajudaria muito para me desconectar, então, eu me coloquei a serviço dela.

O que você acha de atrizes cisgênero interpretarem personagens trans?

Deixa eu te falar o que eu penso. Acabou agora de ser lançado o manifesto trans. Eu acho esse manifesto da maior legitimidade, porque a gente vive hoje em uma sociedade onde todas essas pessoas, os transgenders, não têm condições de retratarem a si mesmos, a realidade deles. Não há espaço para que seja retratado por eles. É muito legítimo esse manifesto. Se houvesse um momento na nossa sociedade em que de fato as oportunidades fossem iguais, aí eu concordo. Nós artistas somos como os anjos, a gente não tem sexo. A gente pode fazer qualquer coisa. Eu acho que esse é o barato do artista, poder transcender a questão do gênero e criar seres humanos. Mas a nossa sociedade ainda não permite essas coisas. Então, entendo o manifesto, peço licença, com o maior respeito. Tentei construir uma coisa com a maior dignidade, o maior respeito. Essa personagem é minha, eu lutei por ela, por acreditar na humanidade dela, por querer contar essa história de amor de duas irmãs.

Qual a mensagem principal desse filme, o que ele quer passar para quem o assiste?

É um filme de esperança. Eu acho que quando as pessoas saem do cinema depois de assistir ao filme até o fim, saem com esperança. É um filme que deixa uma onda boa, é um filme que faz um afago na alma da gente. Dá pra ser feliz de alguma maneira, a gente vai encontrar uma solução. Ele é um filme positivo, apesar de ser um drama no qual as pessoas se emocionam, as pessoas também dão risada. Eu me considero até uma atriz de formação cômica, então foi muito legal ter esse temperinho de humor aqui e ali. A maior mensagem, para mim, é sobre o amor mesmo e sobre esperança.

Durante o período de produção, ao ir atrás de apoio e ouvir palavras de rejeição, pessoas dizendo que isso poderia manchar a sua carreira, isso fez com que você sentisse um pouco do preconceito que essas pessoas passam?

Não por isso. Eu descobri entrevistando essas pessoas. Quando você começa a descobrir as mazelas, as crueldades, as atrocidades as quais elas são submetidas depois da infância. A vida dessas pessoas é muito cruel, elas recebem poucas oportunidades. É necessário que se reconheça, no mínimo, a invisibilidade desse grupo dentro da nossa sociedade. Nós, aqui no Brasil, achamos que é um país sem preconceito, mas não é. O Brasil tem uma sociedade manchada pelo preconceito sob vários aspectos. Sobre vários assunto o brasileiro é preconceituoso, mas também falta informação, falta educação. A gente mora em um país em que as desigualdades são tantas, as pessoas não têm nem acesso a educação, como elas vão mudar um ponto de vista? A nossa questão é muito profunda.

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Se, de alguma maneira, esse filme ajudar a trazer luz para essas pessoas, a essa questão, ou ajudar a fazer mais debates a esse respeito, eu já fico muito contente. Mas nós ainda temos muito chão pela frente para criar uma sociedade equilibrada no nosso país, infelizmente.

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