PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|A genial história de um gênio

Em Miles Davis : A autobiografia, o maior jazzista de todos os tempos bate um papo com os leitores.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:
 Foto: Estadão

Eu tenho alguma resistência a ler autobiografias. Talvez trabalhar ouvindo histórias reais de vida tenha afastado a leitura de relatos pessoais de minha noção de lazer. Injusto. Muito injusto, como ficou claro para mim lendo a autobiografia do Miles Davis.

PUBLICIDADE

Davis foi um dos músicos de jazz mais importantes de todos os tempos - para muitos, o mais importante.  O alcance de sua obra se estendeu para muito além do jazz, fazendo dele um dos músicos mais influentes do século vinte. Seu álbum mais famoso, Kind of Blue, figura entre os mais vendidos da década de 1950, sendo o álbum de jazz mais vendido da história.

Em Miles Davis : A autobiografia, escrito em parceria com o jornalista Quincy Troupe em 1989 e lançado agora pela editora Belas Letras, travamos conhecimento com essa trajetória pelo lado de dentro; o livro foi escrito a partir de centenas de horas de entrevistas de Miles com Troupe, que optou por manter a voz original do músico ao longo das mais de quinhentas páginas, com sua coloquialidade, seus palavrões, sua melancolia, raiva, entusiasmo, alegria. Por conta dessa escolha do escritor fica parecendo para os leitores que estamos sentados informalmente batendo papo com o jazzista num domingo à tarde.

Ao contrário de muitos de seus colegas músicos, Davis vinha de família abastada, filho de pai dentista bem sucedido, o que influenciou o valor que dava para os estudos. Ele refletia como poucos músicos à época sobre o racismo, denunciando sua ocorrência em atitudes veladas ou mesmo não percebidas, décadas antes de a ideia de racismo estrutural ser disseminada. Quando foi para Nova York espantou-se com o desprezo de muitos de seus ídolos pelo estudo formal: "Não acreditava que todos aqueles caras como Bird, Prez, Bean, todos esses cabras não iam a museus ou bibliotecas para pegar partituras emprestadas e poder conferir o que estava acontecendo. (...) Conhecimento é liberdade, e ignorância é escravidão, e eu simplesmente não conseguia crer que alguém era capaz de estar tão perto assim da liberdade e não se valer disso". Miles concluiu que isso também era fruto do racismo: "Nunca entendi por que os pretos não aproveitam tudo o que podem. É como se houvesse uma mentalidade de gueto que dissesse a eles que não devem fazer certas coisas, que são reservadas apenas aos brancos".

É verdade que ele mesmo abandonou posteriormente a faculdade de música em favor do aprendizado prático da noite, das jam sessions. Mas nunca deixou de se interessar pelo cenário musical mais amplo. Não foi por acaso que esteve sempre envolvido nas - e muitas vezes à frente das - grandes inovações do jazz, desde as primeiras décadas do século XX até os anos 1960 e 1970, quando foi um dos precursores da fusão entre entre jazz e rock - o que deu um novo sopro de vida ao gênero.

Publicidade

Todo ano a Unesco celebra, 30 de abril, o Dia Internacional do Jazz, uma forma de arte, como ela mesma afirma, "reconhecida por promover a paz, o diálogo entre as culturas, a diversidade e o respeito aos direitos humanos e à dignidade humana; erradicar a discriminação; promoção da igualdade de gênero; e promoção da liberdade de expressão".

Conhecer agora a vida de Miles Davis vem muito a propósito, portanto, já que - à luz dessa proposta da Unesco - vemos que ele não só viveu do jazz, mas viveu o jazz.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.