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Um blog de pai para filha

No meu tempo, tudo isso aqui era mato.

Ir à locadora preenchia o vazio da diversão obrigatória dos finais de semana. Era um programa aceitável em uma noite de sexta. Perdi as contas das vezes que ia sozinho sonhando encontrar uma menina escolhendo os mesmos filmes.

Por Victor Sá
Atualização:
Arte: André Bonani Foto: Estadão

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Querida atrizinha,

Antes desse arranha-céu gigante de vidros espelhados e esses homens de gravata, existia a 2001 VIDEO, uma videolocadora que o papai....Oi? O que é uma videolocadora? Ah, era um lugar em que íamos pegar filmes. Não, não tipo torrent. Era um lugar físico mesmo. Tínhamos que sair de casa, andar umas quadras, escolher o filme, pagar e devolver depois de uns dois dias. Mas antes tínhamos que rebobinar a fita. Fita? Bem, era um negócio chamado VHS, tipo um K7. K7? Putz, era uma fitinha menor que servia para ouvir música. Não, nada como um ipod. Era...ó, tá difícil. Vou começar do começo, tá minha cinéfilinha?

Quando tinha uns 8 anos de idade, a locadora do bairro era um dos meus lugares favoritos do mundo. Nessa época, seu vovô (meu pai) sofreu um acidente sério de carro, o clima em casa estava difícil e a videolocadora, há umas duas quadras, era um belo refúgio. Lá, encontrava um monte de opções de diferentes realidades distribuídas pelas prateleiras.

Não lembro bem quem me levava, já que eu era uma criança, mas lembro de conversar com os tios que lá trabalhavam. E eles me adoravam. Quer dizer, eu era uma criancinha interessada nos filmes, nomes de diretores, atores e atrizes. Era meio como o mascote do lugar. Eles sempre me davam cartazes de presente. Eu tinha um, nada adequado para minha idade, da Sharon Stone no Instinto Selvagem. Eles achavam uma graça enorme daquilo. Costumava dizer que queria ser "cineastra" quando crescesse. Eles riam a valer. Eram dois caras. E quando tinham outros clientes eles sempre me apresentavam. Me sentia daquela turma. Dava dicas para os clientes. E bem, se o plano de ser "cineastra" não desse certo, tinha a esperança de que me contratassem por lá mesmo.

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Quando chegou a Blockbuster, aconteceu o que sempre acontece. Um clássico: Eles foram obrigados a fechar as portas. Não conseguiram competir com a mega empresa. Eu fiquei triste e prometi boicotar a Blockbuster em solidariedade. O boicote não durou muito e logo fui seduzido pelo novo shopping de filmes.

Já era mais velho e me recordo de encontrar na locadora novamente um ótimo refúgio. Dessa vez, ia lá me esconder quando muito alto. Ficava viajando nos filmes esperando a brisa passar um pouco antes de voltar pra casa. Lá, não tinha nenhum funcionário amigo. Mas tinham os filmes. E vendiam pipoca e outras laricas, me lembro. Uma sacada óbvia que meu antigo refúgio não teve.

Essa fase, a da Blockbuster, durou até que a sessão "Interesses Especiais" ficou pequena demais pra mim. É, eles dividiam os filmes por sessões, em prateleiras. Cada sessão tinha um nome. "Lançamentos", "Drama", "Aventura", etc. A de "Interesses Especiais" era basicamente tudo que não fosse americano e fosse "alternativo","diferentão" ou qualquer classificação tonta assim. Sempre me perguntava, o que não é um interesse especial?

Pois bem, aí entra a 2001, minha nouvele vaguezinha. O catálogo dela era basicamente todo de "Interesse Especial". E lá eles dividiam por diretores, escolas. Funcionava melhor. Na época, não tinha nenhuma 2001 no meu bairro. Tinha que andar e pegar buzão pra chegar lá. E valia a pena o esforço.

Ir à locadora preenchia o vazio da diversão obrigatória dos finais de semana. Era um programa aceitável em uma noite de sexta. Perdi as contas das vezes que ia sozinho sonhando encontrar uma menina escolhendo os mesmos filmes. Imaginava a cena, ambos disputando a única cópia do "Annie Hall", uma conversa breve sobre "Dogma 95" ou "Cinema Novo" e, no fim, terminaríamos assistindo ao filme juntos (em alguma casa fictícia já que ainda não morava sozinho). Nunca aconteceu, é verdade, mas a possibilidade já era divertida.

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Lá, aprendi um tanto sobre cinema. Foi onde pintou, pela primeira vez, a manjada discussão "Truffaut ou Godard". Um bom esquenta pra faculdade de comunicação. Lá foi meu cursinho e graduação.

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As meninas que despertavam meu "interesse especial" manjavam de cinema de "interesse especial". A 2001 foi fundamental nesse processo. Eles tinham mil filmes obrigatórios para qualquer pretenso cinéfilo. E eu mergulhei nessa onda. Em determinado momento, comecei a cultivar um histórico de filmes alugados que me orgulhava. Virou uma noia, não alugar nada que queimasse o filme do meu histórico. Nada de Spielberg.

Uma bobagem, obviamente. Além de hoje me amarrar no Spielberg, bem, se preocupar com o seu histórico de filmes alugados é bem estúpido. Esse histórico não era divulgado em lugar nenhum. Nem Facebook, Twitter, lista da Odebrecht, Instagram, nem nada. Só o pessoal da locadora tinha acesso aos seus filmes. A privacidade ainda era uma coisa, oi?... O que é privacidade?! Putz, pequena estrelinha, privacidade foi um conceito muito importante até uns anos atrás. Mas isso foi antes. Quando tudo isso aqui era mato.

Amor cinéfilo, Papai. 07.04.16

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