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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

O lado B da globalização

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Estive vendo com mais atenção o jogo desse armênio do Dortmund, Henrikh Mkhitaryan, um meia que fez duas grandes temporadas pelo Shakhtar Donetsk e agora está criando um problema porque, teoricamente, não é titular de Jürgen Klopp mas joga muito. Ali do lado dele tem outra figuraça, Pierre-Emerick Aubameyang, nascido no Gabão. O futebol alemão tem muitos desse tipo que talvez nem ficássemos conhecendo em outros tempos, como o melhor lateral esquerdo da Europa neste momento, o austríaco David Alaba. E há tantos outros, na Itália e na Inglaterra principalmente, que chegam um tanto desconhecidos e se tornam essenciais, porque os grandes da Espanha só contratam depois que o sujeito virou estrela. Não seria este um lado B (de bom) da globalização? Teríamos ideia de quem é Mkhitaryan em ouros tempos? Quantas centenas de bons jogadores não passaram despercebidos antes da era do futebol-negócio?

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Carles: Não tenho a menor dúvida. Sem a tecnologia de que dispomos aconteceria o que aconteceu com muitos grandes jogadores do passado que, agora, através de escassos vídeos e depoimentos, somos obrigados a acreditar que foram verdadeiros galácticos do seu tempo e, provavelmente, mediante uma adaptação, o seriam também agora. Imagine a quantidade dos que ficaram e ficarão desconhecidos. Convenhamos que essa evolução não é privilégio do futebol, mas de todos os campos do conhecimento. É a história do ver para crer e agora podemos ver seja lá onde for, e quase instantaneamente os vídeos e a evolução de um craque, ainda usando fraldas, lá na terra do "Nunca jamais". Se bem (tinha que ter né?) que na sua proposta está justamente o contraponto desse seu esperançador raciocínio. Você tem toda a razão quando diz que os preguiçosos e inábeis diretores dos clubes espanhóis, e não são os únicos, só contratam os já conhecidos, por isso pagam mais, e apesar disso, muitas vezes compram gato por lebre. Isso significa que a tecnologia só facilita as coisas, agiliza, mas continua sendo o critério de avaliação humano do velho olheiro o que dita a tendência. A grande mudança que a globalização provocou realmente é que os garotos podem ver desde cedo muitos dos craques jogarem no outro extremo do planeta e cada vez mais jogam ao gosto dessa grande arena mundial. É cada vez mais fácil colocar para jogar um garoto do Gabão num time da Alemanha e que ele se adapte ao gosto do planeta futebol. Estou de acordo, o futebol da era dos negócios é um grande espetáculo e eu me divirto muito com ele.

Edu: Mas não estou me referindo só à ponta final do processo, que é o momento em que vemos o craque despontar para o espetáculo, sem saber o que se passou antes disso, o histórico familiar, os sacrifícios na infância, a origem social complicada, os preconceitos que teve que enfrentar - uma história de milhares deles. Os jogadores que, por exemplo, saíam daqui da América do Sul para enfrentar um mundo desconhecido em todos os sentidos, lá pelas décadas de 50 e 60 ou até um pouco depois, esses sim foram desbravadores, viveram uma aventura. E também não podemos resumir tudo ao chavão do garoto que desde criança só pensa no Barcelona ou no Madrid - como Neymar. Há muitos centros menos importantes que são destinos de tanta gente. O fato é que, hoje, quando parte para o Exterior, o jogador só não vai minimamente preparado se não quiser ou se seu entorno familiar não se preocupar com isso, ou se seus representantes não valorizarem essa questão. E a globalização não acabou com os episódios de preconceito, as barreiras sociais em muitos casos são ainda maiores. O que acontece é que há uma adequação maior das culturas esportivas, um processo bem gradativo, mas caminhando, lentamente.

Carles: Se o problema (se quisermos chamar assim) não é o mecanismo, mas a forma como ele está viciado, os canais seguem privilegiando compradores, e estes estabelecendo o padrão da "mercadoria" e os vendedores de talentos seguem formando hordas de aspirantes à espera da chamada da Canaã futebolística. Você imagina... Não, você sabe muito bem a quantidade de garotos que a tal globalização deixa esperando a oportunidade que nunca chega. Os negócios ilusórios das escolinhas, com exércitos de garotos que são literalmente enganados, alguns deles que até o tio mais sincero vê que não tem condições, mas que segue alimentando esperanças de um dia vestir a camisa sonhada. A globalização informa sim, é capaz de enviar em segundos uma informação e ela está toda, a verdadeira e a não tão verdadeira, disponível para quem quiser ver. Para quem quiser não, para quem estiver preparado para separar o trigo do joio. Sei que apesar de explicar muito bem a minha posição ainda vai ter muita gente que vai ler que eu sou contra o progresso, que preferia os sinais de fumaça ao caudal de internet, e você sabe muito bem que não é isso. Temos a grande oportunidade de ampliar nossas perspectivas culturais o que inclui o futebol, a música ou a literatura. Ampliar não significa substituir. Eu sou o primeiro que fico procurando pela rede os jogos das liga do Brasil, da Inglaterra, de Marrocos. Mas faz muito tempo que não vou, um domingo de manhã, ao campo do time do bairro que está na terceira divisão, acho.

Edu: Não é questão de ser contra ou a favor o progresso, essa discussão da época da Guerra Fria, nada disso. E a globalização no futebol, obviamente, tem todos os ingredientes do processo em outras áreas do conhecimento humano. Nem seremos ingênuos de pensar que, com mais informação e, portanto, teoricamente mais transparência social, os calhordas serão sempre mais facilmente identificáveis. Só acontecerá em parte, porque os calhordas são gremlins, multiplicam-se de acordo com o meio, são paramécios invisíveis que vão continuar bebendo o sangue de muita gente. Mas o lado do bem também precisa saber extrair ferramentas para continuar buscando neutralizar a porção nefasta e fazer a roda girar, promover a cultura futebolística, esclarecer o que é a tal Canaã, depurar as escolinhas, apostar em qualidade. Do contrário, vamos ficar aqui lamentando o tempo todo o sistema, que as culturas foram vilipendiadas e que - quanto ao nosso tema - não existe mais o futebol de várzea, o que aliás não é verdade. O fato é que o sistema não é impessoal e, portanto, está nas mãos das pessoas fazer algo para resistir e sacudir essa poeira.

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Carles: Não é lamento e que fique claro, posso ser o cara mais otimista do meu quarteirão (e olhe lá!). Insisto que o que temos é um quadro favorável, pronto para ser aproveitado de forma igualitária. Eric Hobsbawm, historiador britânico e grande fã do futebol, no seu livro "Guerra e Paz no século XXI" defende que o futebol é o maior dos exemplos da dialética das relações entre a globalização, identidade nacional e xenofobia. Segundo ele, o futebol, graças aos meios de transmissão globalizados, foi transformado de fenômeno de dimensões locais na maior das indústrias culturais. O lado bom é que, apesar das suas origens, dos seus traços culturais, étnicos e religiosos evidentes, apesar de tudo, o craque é aceito pelos que normalmente rejeitam os seus pares no dia a dia. Espero que isso também seja um processo educativo e que essa aceitação se estenda ao resto de conterrâneos desse menino escolhido pelos deuses para mostrar que em qualquer parte do mundo pode surgir um galáctico. Seja no futebol, nas ciências ou nas artes. A globalização deveria ser capaz de mostrar e demonstrar isso. De todos e para todos, para começar.

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Jogadas e gols do armênio Henrikh Mkhitaryan, atual jogador do Borussia Dortmund

//www.youtube.com/embed/VXZFspdgaW8

Pierre-Emerick Aubameyang, nascido no Gabão e agora jogando no Borussia Dortmund

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