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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Volkan, a sensibilidade punida

Carles: Há uns dias, durante o derbi turco do Mar Negro entre Trabzonspor e Rizespor, ocorreu um lance que virou "trending topic". E não foi exatamente um golaço mas o fato de Volkan Sen, meio-campista de 26 anos do Trabzonspor, ter deixado o campo aos prantos, depois de uma discussão com torcedores.

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Quando ouvi a história pela primeira vez imaginei que seria um conflito normal com torcedores adversários.

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Carles: Não, os torcedores eram do próprio time.

Edu: Pois é, e a história semeou a discórdia entre os próprios simpatizantes do 'Trab'.

Carles: Além do lance em si, as opiniões que vieram depois acabaram por desatar o debate sobre onde está a fronteira entre o aspecto humano e o profissionalismo. Ou se existe essa tal fronteira. As cenas do encontro em vídeo mostram como Volkan se dirige à arquibancada e parece responder, chuta o ar o que demonstra a sua impotência e, em seguida, pede a substituição. Recebe o consolo dos companheiros, dos adversários e até do árbitro que tenta confortá-lo, inclusive abraçando Volkan, que a essa altura chorava copiosamente.

Edu: O mais inusitado é o fato de o próprio jogador decidir que não tinha condições de continuar, algo fora do script e que, por isso, chocou tanto os companheiros quanto os adversários que foram tentar argumentar com ele, ao mesmo tempo em que prestavam solidariedade.  Mas parece que, depois, a partir das consequências, a coisa se complicou.

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Carles: Num princípio ele recebeu todo o apoio, inclusive a compreensão do seu treinador mas, passados uns dias, a direção do clube declarou que quer transferir o jogador, pela falta de profissionalismo que o clube requer dos seus assalariados.

Edu: Aí, obviamente, entra a crueldade do sistema. Certamente alguns dirigentes, envergonhados, porque o caso virou motivo de chacota para os adversários, forçaram a barra para a direção tomar algum tipo de providência. E em nenhum momento devem ter imaginado que o rapaz merecia, primeiro, algum tipo de ajuda por ter reagido de uma forma descontrolada por uma razão especial e, depois, por ter tido consciência de que era impossível continuar no jogo, um tipo de fraqueza que o ser humano precisa ter coragem para assumir, ainda mais num meio tão áspero como futebol.

Carles: Nessas horas, um pouco de convicção e firmeza no apoio ao jogador por parte da diretoria, poderia a médio prazo, ter um repercussão positiva a nível internacional, para a entidade. Mesmo que seja algo marqueteiro. Da forma que as coisas se desenrolaram, fica uma imagem mesquinha e retrógrada. Se não, vejamos, caso um jogador sinta uma lesão muscular ou uma indisposição tem todo o direito a pedir a substituição e o treinador será obrigado a acreditar na sua palavra, na falta de maiores evidências que comprovem a impossibilite de seguir jogando. Se o motivo é emocional, igualmente pode impedir que o futebolista não esteja na plenitude da sua forma e que isso realmente seja um obstáculo para o seu melhor desempenho. Seguir em campo nessas condições pode, inclusive, ser algo prejudicial para o seu time. Existem indícios de que o torcedor teria feito chacota sobre a morte recente de um familiar de Volkan.

Edu: Para você ver como a estrutura é podre no aspecto humano. Até mesmo os líderes do time, os capitães, os mais experientes, poderiam tornar a situação mais transparente e exigir apoio ao colega, o mesmo apoio que deram em campo. E o curioso foi que a torcida - e isso fica claro pelas imagens - partiu para cima do sujeito que ofendeu Volkan, ameaçando-o de agressão. Imediatamente o tal torcedor fez claros gestos de reconhecimento, como se desculpando pela bobagem que disse. Ou seja, o próprio agressor admitiu a bobagem, mas a direção do clube passa por cima disso.

Carles: Pelo visto, é uma tentativa de frear uma possível tendência de que, ao "mínimo transtorno" os jogadores profissionais decidam por sua conta seguir jogando ou não. Uma força de pressão patronal contra "ataques de sensibilidade". Motivos como o caso de Volkan ou, por exemplo, jogadores que recebem ofensas racistas, correm o risco de serem considerados pelo grande chefe cara-pálida, insuficientes para justificar o abandono das obrigações pelas quais estão sendo pagos. Não deixa de ser um julgamento subjetivo e possivelmente injusto. Lógico que no caso da reação ao racismo existe uma justificativa coletiva, a intolerância. Em casos como o de Volkan, o motivo é pessoal, só que em ambos, o desrespeito é patente.

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Edu: Mas não deixa de ser também um nítido caso de preconceito e intolerância. Quem tem direito de decidir se o cara pode ou não reagir? Se pode ou não chorar? Quem pode impor que o sujeito, quando é ofendido ou caluniado, precise adotar um comportamento passivo e indiferente? Volkan poderia ter reagido violentamente, partido para a agressão física. Mas não, apenas desabou emocionalmente e pediu para sair. Que delito é esse?

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Carles: Ao contrário, demonstrou honestidade. Tem o caso das clássicas desqualificações à mãe do árbitro que, da mesma forma, podemos considerar como ataques pessoais, sem referência ao desempenho técnico e com o claro objetivo de intimidar e desestabilizar emocionalmente. Neste caso, porém, a vítima das ofensas sabe que não existe um julgamento fundamentado. No caso do jogador turco ou nos de racismo, os ataques verbais fazem referência a um fato real e com a intenção deliberada de mexer com a fibra sensível. Provavelmente, Volkan teve que fazer um grande esforço para tentar deixar o assunto de lado e poder entrar em campo mas, pelo visto, seguia à flor da pele. O torcedor, maldosamente, conseguiu que a coisa viesse à tona.

Edu: Ou seja, o tipo de reação sórdida do tal torcedor encontrou, no fundo, respaldo na própria direção do clube. Isso sim é uma completa inversão de valores.

Carles: Pelo menos, o torcedor parecia arrependido.

 

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