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Cientistas corrigem estudo sobre testosterona que barrou atletas, como Caster Semenya, em Tóquio

Pesquisadores já não afirmam uma relação causal entre os níveis elevados do hormônio sexual masculino e o melhor desempenho de atletas do sexo feminino

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Por Jeré Longman
Atualização:

Regras controversas sobre atletas intersexuais, que impediram a sul-africana Caster Semenya de defender seu título nos 800 metros nos Jogos Olímpicos de Tóquio, foram submetidas a um novo escrutínio, pois cientistas publicaram uma correção a um estudo que indicava uma conexão causal entre níveis elevados de testosterona e desempenho atlético aprimorado nas atletas de elite.

O estudo, publicado em 2017, está entre as evidências usadas para barrar em certos eventos femininos atletas com uma rara condição genética que resulta em níveis elevados de testosterona.

Caster Semenya, atleta sul-africana, ficou fora dos Jogos de Tóquio Foto: Saeed Khan/AFP

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Na quarta-feira, os advogados de Semenya e um importante crítico americano das restrições pediram a suspensão dos regulamentos após uma correção do artigo de 2017 publicada no British Journal of Sports Medicine, escrita por dois cientistas afiliados ao órgão mundial que regula o atletismo.

Os cientistas concluíram que o estudo que indicava uma relação fundamental entre os níveis elevados de testosterona e o desempenho atlético aprimorado entre atletas de elite do sexo feminino era “preliminar” e “poderia ter sido enganoso ao sugerir uma inferência causal”.

Em 2018, o estudo foi usado para implementar regulamentos que proíbem atletas intersexuais de competir em eventos de corrida femininos de 400 até 1600 metros, a menos que baixem seus níveis naturalmente elevados de testosterona.

Os regulamentos regem atletas com um distúrbio do desenvolvimento sexual conhecido como 46, XY DSD. Essas atletas têm um cromossomo X e um Y em cada célula, o padrão masculino típico; genitais que não são tipicamente masculinos nem femininos; e níveis de testosterona na faixa masculina, o que, dizem os médicos, sugere a presença de tecido testicular ou testículos internos.

A World Athletics, que rege o atletismo, reconheceu que seus regulamentos são discriminatórios, mas argumenta que são justos e necessários para garantir que as atletas do sexo feminino possam participar em igualdade de condições em termos de força, massa muscular e capacidade de transporte de oxigênio.

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Mas parece certo que os questionamentos aos regulamentos DSD implementados pela World Athletics vão começar de novo após a correção do British Journal of Sports Medicine. Na quarta-feira, Gregory Nott, um dos advogados de Semenya, disse ao jornal britânico The Telegraph que a equipe jurídica da atleta esperava que a World Athletics agora “apoiasse a anulação dos regulamentos”.

Semenya perdeu recursos para correr os 800 metros em competições internacionais perante o Tribunal de Arbitragem do Esporte, uma espécie de Suprema Corte dos esportes internacionais, e o Supremo Tribunal Federal da Suíça. Seu caso está no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, embora especialistas jurídicos tenham dito que uma decisão a favor de Semenya não significaria que a World Athletics teria de permitir que ela corresse em seus eventos.

Ela venceu os 800 metros nas Olimpíadas de Londres em 2012 e nos Jogos de 2016 no Rio de Janeiro. Barrada pelas novas regras da prova em Tóquio, ela tentou correr os 5 mil metros nas Olimpíadas deste ano, mas não conseguiu um tempo de qualificação para o evento.

“É mais do que surpreendente que a World Athletics não tenha revelado essa evidência antes das recentes Olimpíadas de Tóquio e não tenha permitido que Caster defendesse seu título nos 800 metros”, disse Nott, advogado de Semenya, ao The Telegraph.

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Roger Pielke Jr., professor da Universidade do Colorado que por vários anos criticou a ciência usada pela World Athletics para restringir Semenya e outras atletas intersex, disse em uma entrevista por telefone na quarta-feira que os regulamentos DSD deveriam ser suspensos enquanto se aguarda uma análise independente.

“Trata-se de um teste para a World Athletics mostrar que realmente está ouvindo as evidências e a ciência, em vez de tentar submeter a ciência a alguma decisão predeterminada”, disse Pielke.

Anteriormente, ele escrevera que a correção era uma “admissão de erro por parte da World Athletics na única análise empírica que sustenta seus regulamentos de elegibilidade para atletas femininas”. “As implicações são enormes”, acrescentou.

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A World Athletics procurou minimizar o significado da correção na quarta-feira. Disse que as críticas ao estudo de 2017 foram abordadas em um artigo de 2018 no British Journal of Sports Medicine. A correção foi feita, escreveram os cientistas da World Athletics, para esclarecer questões persistentes levantadas por observadores independentes a respeito de uma relação causal entre os níveis elevados de testosterona e o desempenho atlético feminino.

O documento de 2017 “não teve qualquer influência” sobre uma década de pesquisas conduzidas pela World Athletics antes da implementação de seus regulamentos de elegibilidade para atletas do sexo feminino, disse o órgão regulador em comunicado.

Desde então, continuou o comunicado, “várias publicações revisadas por pares apoiaram a existência de uma relação casual entre níveis elevados de testosterona sérica e melhores características antropométricas/fisiológicas e desempenhos atléticos em mulheres jovens”.

Por fim, Stéphane Bermon, diretor do departamento de ciência e saúde da World Athletics, e Pierre-Yves Garnier, seu antecessor, escreveram na correção que seria necessário realizar um teste independente e randomizado para “estabelecer evidências científicas confirmatórias para as relações causais” entre níveis elevados de testosterona e o desempenho de atletas femininas de elite.

Em sua correção, os cientistas apontaram que a afirmação do estudo de 2017 - a qual diz que, em certos eventos, as atletas intersexuais “têm uma vantagem competitiva significativa” sobre as atletas do sexo feminino com níveis mais baixos de testosterona - deve ser alterada para dizer que, com base em poucas evidências, níveis mais altos de testosterona “foram associados a um melhor desempenho atlético”.

Suas descobertas, Bermon e Garnier escreveram, devem ser vistas como “nada mais que preliminares, isto é, não confirmatórias nem comprobatórias de uma relação causal”. Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times. / Tradução de Renato Prelorentzou.

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