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‘Beethoven corintiano’ prepara concerto para os pais e vislumbra carreira internacional

Integrante do elenco corintiano na fase da Democracia, na década de 1980 e reserva de Casagrande, Julio César supera a surdez, estuda até dez horas de piano por dia e planeja fazer exibições em Portugal e no Canadá

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Por Toni Assis, especial para o Estadão
Atualização:

Há pouco mais de 100 quilômetros da capital paulista, um ex-jogador de futebol que defendeu o Corinthians no início dos anos 80 vem se dedicando arduamente a realizar uma tarefa que ganhou o sentido de “missão”. À frente de um piano, e com uma jornada de estudos de até dez horas diárias, o quase sessentão Julio César se dedica a ensaiar o “Concerto de Adeus”, obra de sua autoria, que homenageia a memória dos pais Odette e Edson. O detalhe é que todo esse trabalho é desempenhado sem que ele escute uma nota sequer. Completamente surdo, esse “Beethoven corintiano” mantém viva a paixão pela música erudita.

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A comparação com o maestro e compositor alemão, que também perdeu audição já na fase adulta, dá sentido à dedicação deste solista de piano que, nos últimos seis meses, trocou São Paulo por Peruíbe a fim de finalizar o que chama de maior projeto da sua vida.

“Perdi meus pais em um intervalo de um ano”, afirmou um emocionado Julio, que viu sua vida mudar após ter pendurado as chuteiras. Antes, entre os anos de 82 e 83, quando fez parte do elenco da Democracia corintiana e foi reserva de Casagrande no ataque, viveu ali sua grande fase na carreira.

Julio César ao piano durante a execução da sinfonia Jogadas da Vida com a orquestra de Cubatão, no Teatro Municipal de Santos. Foto: Arquivo Pessoal

Depois de parar com o futebol, um drama deu novo rumo para sua vida. Uma otosclerose aguda - processo de calcificação dos ossos responsáveis pela audição - resultou em uma surdez progressiva que o levou a uma forte depressão. Assim, por volta dos 35 anos, nenhum ruído era percebido pelos seus ouvidos.

A sinfonia dedicada aos pais é dividida em três atos que espelham a sua percepção ao longo da vida. “O primeiro movimento é o da família. Conta a empatia, amor e convivência dos meus pais com os filhos. Depois vem o funeral, onde o foco é o acidente do pai e a doença da mãe. Retrata ainda, o velório, a morte, sepultamento e as emoções inerentes a esses momentos. Por fim, a terceira fase fala da gratidão por ter tido pais que me guiaram pelos caminhos das artes.”

A base familiar foi o alicerce para que o ex-atleta do Corinthians tivesse uma relação estreita com as artes. Edison, o pai, foi artista plástico de renome internacional com prêmios e medalhas que estão guardadas no Museu de Arte Moderna do Chile.

“Moramos cinco anos fora do Brasil. Na verdade, sou chileno e nasci em Viña del Mar. Minha mãe colocava música clássica para eu escutar desde pequeno. Com sete anos, comecei a tocar violão e decorei as escalas musicais. Por conta disso, consigo compor e tocar piano sem escutar nada. Está na memória. Não ouço, mas sinto.”

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Júlio Cesar posa com a faixa de bicampeão paulista com o Corinthians. Foto: Arquivo Pessoal

Na entrevista dada ao Estadão, ele comentou das influências e de como desenvolveu o processo de criação. “O Bach é o pai da música né. Gosto muito do Beethoven, do Sergei Rachmaninoff e do Chopin. São os compositores que mais admiro. Desde que fiquei surdo, criei um método para trabalhar. Componho na cabeça, vou criando pedaços da música e comparando cada nota que eu criei com as da escala musical. Vou decifrando e coloco em partitura”, afirmou.

O Concerto de Adeus tem o acompanhamento do professor e regente da orquestra sinfônica da FMU, Rodrigo Vitta. Os ensaios acontecem a cada 15 dias. “O Julio é um fenômeno, sem dúvida. Eu o conheci através de uma amiga produtora e só acreditei quando vi. Criamos um projeto chamado Música sem Fronteiras e ele toca sob a minha regência com a sinfônica da universidade. É um iluminado e sua missão vai muito além da música. Suas composições encantam as pessoas”, afirmou Vitta.

Perfeccionista, ele busca harmonizar todos os detalhes e não mede esforços até conseguir o resultado esperado. “Estou ensaiando muito para poder apresentar com orquestra. Criar é uma coisa, mas tocar é um processo bem diferente. Ensaio com o maestro para tocar com segurança a fim de enfrentar a plateia que vai ao teatro”, disse Julio César.

O “Concerto de Adeus”, no entanto, não é a sua primeira criação. A pioneira na área da música erudita é a sinfonia “Jogadas da vida”, que já foi apresentada no teatro Municipal de Santos com a orquestra sinfônica de Cubatão. Da música para a literatura, o projeto também virou livro. Neste trabalho sua trajetória é passada em revista. A obra retrata a época em que foi atleta profissional, aborda a surdez, depressão e, por fim, a volta por cima com a utilização do esporte como ferramenta de inclusão.

“A música foi fundamental e antes de sofrer com o problema auditivo, sempre esteve presente na minha vida. Além de tocar violão desde pequeno, frequentava concertos e óperas quando joguei futebol no exterior.”

Julio César despontou no Corinthians e depois rodou por vários clubes no Brasil. Na Europa, defendeu o Vitória de Guimarães, em Portugal, e também o Royal Antwerp, da Bélgica. “Aproveitei muito para curtir minha paixão pela música erudita. Mal sabia que depois ficaria surdo e usaria esse hobby na minha vida”, afirmou.

PROJETO SOCIAL COM DEFICIENTES AUDITIVOS

Foi por meio do esporte que Julio César conseguiu lidar com a surdez na fase pós-carreira de jogador. Professor de futebol para crianças ouvintes, ele recebeu, na época, um convite da Secretaria de Esportes da Prefeitura de São Paulo para montar uma escolinha para surdos.

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Baseado na sua experiência, criou o projeto Educação Integral do Surdo por Meio do Esporte. Ali, usou o basquete, o futebol, o handebol e o vôlei (que são as quatro modalidades mais usadas nas escolas) para desenvolver aspectos físicos, psicológicos e sociais de crianças com deficiência auditiva.

“Surdo recebe informação pela visão. Ao invés de apitos, usava coletes e girava para chamar a atenção. As crianças começavam a correr olhando a bola e o juiz para ver as marcações. Isso melhora a visão periférica e ajuda em situações do dia a dia.”

Mesmo atuando como professor na área de esporte, a música também achou seu espaço quando seu projeto foi incrementado com aulas de dança e capoeira. “Nas aulas de dança, eu virava as caixas de som para o chão. As crianças sentiam a vibração e participavam. Fizemos várias coreografias.”

Agora, no entanto, isso faz parte do passado. Com a possibilidade de tocar o Concerto de Adeus em Portugal e no Canadá, Julio passou seu projeto de inclusão com crianças surdas para 13 mil professores de educação física que estão dando continuidade em todo o estado. “Essa é a minha contribuição.”

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