‘Corinthians fere qualquer modelo de fair play financeiro’, diz especialista

Economista Cesar Grafietti conversa com o ‘Estadão’ sobre dívidas de clubes, SAFs e mais temas da estrutura econômica do futebol

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Foto do author Rodrigo Sampaio
Atualização:

Temas relacionados ao Fair Play Financeiro (FFP, sigla em inglês) voltaram a ganhar musculatura nas últimas semanas, com diferentes dirigentes comentando a necessidade do estabelecimento de regras para manter o futebol brasileiro saudável financeiramente. As falas coincidem com o sucesso esportivo de SAFs, como as de Botafogo e Bahia, e os movimentos arrojados do Corinthians no mercado da bola, apesar da grave crise que abala os cofres do clube paulista.

Segundo o economista Cesar Grafietti, o Fair Play Financeiro nada mais é do que “o equilíbrio da indústria do futebol por meio da saúde financeira dos clubes”. Boas práticas incluem não atrasar o pagamento de salários e encargos trabalhistas, recolher impostos em dia e evitar o acúmulo desenfreado de dívidas. A ideia nasceu há cerca de 15 na Europa, após a Uefa ver clubes de maior investimento ficarem em débito com outros mais modestos, que, por sua vez, não conseguiam manter suas operações estáveis.

Em 2024, o Corinthians foi um dos clubes que mais gastou no País, investindo aproximadamente R$ 170 milhões no futebol. Ao longo do ano, contudo, o clube conviveu com atraso no pagamentos dos jogadores, foi condenado em R$ 40 milhões na Fifa por dívida com Matías Rojas — escapando por pouco de sofrer transfer ban — e viu o Cuiabá, clube com quem briga direto contra o rebaixamento, acionar a CBF para reclamar o pagamento pelo volante Raniele. A postura agressiva despertou insinuações de concorrentes de que o clube dá passos maiores do que a perna pode alcançar.

Corinthians desembolsa, com apoio da patrocinadora Esportes da Sorte, cerca de R$ 3 milhões por mês para pagamentos de Memphis Depay, principal contratação do clube em 2024. Foto: Rodrigo Coca/ Agência Corinthians

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“Independentemente de cálculo ou modelo, o Corinthians fere qualquer modelo de Fair Play Financeiro”, comenta Grafietti. “Fala-se muito de que o Botafogo e o Cruzeiro estão gastando, porém, mais do que estar atento a estes casos, o Fair Play Financeiro deveria estar atento ao que acontece no Corinthians, que é um clube que leva 240 dias para pagar encargos de salário. Do ponto de vista de estrutura, ele faz mal ao futebol porque ele não cria credibilidade que o esporte precisa para aumentar as receitas. Ele atrapalha o rival, contrata jogadores acima do valor de mercado, criando um estímulo negativo.”

Segundo o Relatório Convocados, feito pela Consultoria Convocados em parceria com a Galapagos Capital e Outfield, o Corinthians vive um ‘círculo vicioso sem fim’ de aumento de dívidas, mesmo com um faturamento de aproximadamente de R$ 1 bilhão. De acordo com a pesquisa, elaborada por Grafietti, o problema do clube não é a operação, mas sim a dificuldade em lidar com altos os custos financeiros. Com a geração do fluxo de caixa insuficiente, o clube atrasa salários, aumentando parcelamentos e o prazo de pagamentos.

Em setembro, o clube atualizou a dívida em R$ 2,3 bilhões. No início do ano, a diretoria estudou uma Recuperação Judicial (RJ) para ganhar fôlego nos pagamentos aos credores, o que acabou não acontecendo. A ideia voltou a ser ventilada após a chegada do CEO Fred Luz, ex-Flamengo, mas grupos de oposição, dos quais alguns membros chegaram a fazer parte da atual gestão, acusam a gestão de aumentar a dívida para criar um ambiente de insustentabilidade, pedir RJ e, posteriormente, instituir uma SAF — o presidente Augusto Melo, nega.

Para Grafietti, o Corinthians inevitavelmente terá de pedir Recuperação Judicial. “Só de custo financeiro ano passado, foram R$ 250 milhões, ¼ da receita só para pagar isso. Só a dívida fiscal deste monte de parcelamento que o clube fez já está dando quase R$ 100 mihões para o próximo ano. As dívidas hoje tornam o clube inviável. Muito mais do que melhorar a gestão esportiva, a solução passa pelo equacionamento da dívida. Caso contrário, vai continuar desse jeito. É um caso clássico de clube que vai se enrolando sozinho por não querer fazer e tomar o remédio amargo que é fazer uma estruturação mais dura dos passivos e dos custos.”

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Para o especialista, uma possibilidade para colocar o clube de volta aos trilhos, além da recuperação judicial, seria a criação de um fundo imobiliário para vender parte da Arena. A ideia já foi levantada na antiga gestão e resgatada pelo grupo de Augusto Melo.

Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, disse não haver fair-play financeiro após o time rubro-negro sofrer goleada do Botafogo. Foto: Vitor Silva/Botafogo

SAFs

“Bem-vindos aos tempos de SAF sem Fair Play Financeiro”, disse Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, após a derrota por 4 a 1 para o Botafogo no clássico, pelo Brasileirão. Pelo segundo ano consecutivo, o alvinegro carioca figura entre os mais bem posicionados do campeonato nacional após décadas de ostracismo. A reconstrução do clube iniciou em 2022, após o magnata americano John Textor se tornar dono da SAF botafoguense. Os altos investimentos do clube em 2024 chamaram a atenção de rivais, que acusam o clube de gastar mais do que arrecada.

Segundo o relatório Convocados, o Botafogo apresentou uma receita de R$ 355 milhões em 2023, com gastos em R$ 444 milhões. Em 2024, a SAF alvinegra investiu incríveis R$ 373,2 milhões somando as duas janelas de transferências, com destaque para as contratações de Thiago Almada (R$137,4 milhões) e Luiz Henrique (R$ 106,6 milhões), as duas mais caras da história do futebol brasileiro.

Diferentemente de Ronaldo Fenômeno, que, por exemplo, adotou uma postura de austeridade quando comprou a SAF do Cruzeiro, John Textor entende que é preciso investir forte no negócio para aumentar as receitas do clube e, a longo prazo, torná-lo sustentável. Para Grafietti, a estratégia é “arriscada”, citando o aumento da dívida já ano passado de R$ 868 milhões para R$ 1,3 bilhão.

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Ao comprar o futebol alvinegro, o acionista assumiu o passivo bilionário do clube associativo. Por meio de acordo judicial com credores e sucessos no renegociamento das dívidas, a atual gestão crê em uma diminuição de R$ 500 milhões em pendências financeiras neste ano. O resultado só poderá ser visto em 2025, quando os números deste ano serão publicados. Um dos problemas da gestão é a falta de transparência, sem a publicação de balanços trimestrais.

Há quem acredite que o investimento no futebol por meio do dinheiro de um terceiro, como acontece em clubes como Manchester City e Bahia, por exemplo, fere o Fair Play Financeiro por influenciar diretamente na competitividade entre os clubes. Contudo, Grafietti explica que o Fair Play Financeiro não tem como premissa reger sobre o tema.

“A Uefa fez uma revisão e cortou a regra que limitava 30% da receita a qualquer dinheiro investido diretamente pelo acionista. Isso caiu por terra. O que é mais importante, de fato, é o sistema estar com as contas em dia, sem prejuízos ou atrasos. Por que o Bahia não pode ter um aporte dos acionistas para garantir que os salários estão sendo pagos? ‘Ah, mas está gastando mais do que pode’, por algum tempo, talvez. Mas, no longo prazo, isso não vai acontecer. Não vai acontecer de o Textor botar dinheiro todo ano para fechar a conta. O dinheiro não nasce em árvore”, comenta.

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Controle de gastos

Recentemente, Everton e Nottingham Forest foram punidos com perdas de pontos na Premier League por apresentarem déficits financeiros superiores ao permitido pela liga inglesa em um período de três anos. Na Espanha, a La Liga segue um caminho parecido com o da Uefa, limitando 45% dos gastos da receita com salários, e planeja aumentar a margem para 70% na temporada 2025/26.

Ao comentar o alto investimento do Botafogo, Textor alega que o Botafogo gasta 45% dos rendimentos em salário e por isso estaria dentro do fair play financeiro da Uefa. O acionista alvinegro criticou a regra de Fair Play Financeiro, acreditando esta ser uma maneira de fazer clubes de maior investimento perpetuar hegemonias. Para Grafietti, a medida acaba não sendo justa com quem tem as contas em dia.

“Essa limitação de 70% é muito ruim porque ela não separa e não dá flexibilidade justamente para quem tem a capacidade de investir mais. O ideal seria trabalhar com duas dimensões: os que devem mais, deveriam gastar menos. Os que devem menos, poderiam gastar mais.”

John Textor é um dos principais personagens da discussão sobre fair play financeiro no futebol brasileiro. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Grupo multiclubes

Segundo o Observatório Social do Futebol, atualmente 178 clubes estão distribuídos em 56 redes multi-clubes diferentes. Um dos casos mais bem-sucedidos é o do Grupo City, dos Emirados Árabes. Abastecido pelo “infinito” dinheiro do petróleo, o conglomerado é dono do Manchester City, clube inglês que passou de time modesto a potência mundial em 15 anos, e que em 2023 adquiriu a SAF do Bahia.

Líder do Brasileirão e semifinalista da Libertadores, o Botafogo pertence à Eagle Football Holding, dona também do Lyon, da França, e RWD Molenbeek, da Bélgica. Um dos trunfos para contratar jogadores como Almada e Luiz Henrique é garantir a estes atletas uma ida ao futebol europeu após a passagem pelo clube brasileiro. Porém, a maneira como ocorre o pagamento entre clubes do mesmo grupo levanta a questão sobre a legitimidade do negócio.

“Este é um tema relativamente novo, mas acredito que a Fifa deveria ter um controle maior sobre esse tema porque abrange mais de uma confederação, mas não existe uma regra sobre este assunto, nem mesmo na Uefa. Todos estão tentando entender os componentes de movimentação para criar regras de restrição. O Textor não está burlando nada porque não há regras que o condene. Isso ajuda a ferir as regras de Fair Play à medida que há movimentações interclubes que podem gerar lucro onde precisa ter lucro, e perda onde pode ter perda”, explica Grafietti.

“Por isso seria importante um controle mais abrangente. Não adianta ter um rigor maior na Espanha, e outro mais frouxo em outros lugares. É necessário uma visão global sobre o assunto, mas a Fifa se sente distante de diferentes mercados, além de haver questões políticas, mas se ela não é capaz de fazer essa gestão, fica difícil de chegar em um modelo compatível com a indústria”, complementa o especialista.

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Grupo City, dos Emirados Árabes, levou o Manchester City de um time modesto a potência mundial em 15 anos. Foto: Darren Staples/AP

Fair play no Brasil

Cesar Grafietti desenvolveu um modelo para implementação de um Fair Play Financeiro no País e enviou à CBF em 2019. Após a criação da Libra, o projeto foi atualizado, mas o economista conta que vê dificuldade na implementação de um regulamento no País, especialmente após o racha que gerou a criação da Liga Forte União (LFU) e impediu a criação de uma liga unificada.

“O projeto não vai para frente porque não tem um sponsor (patrocinador, em tradução literal) do projeto. A CBF, pelo visto, não tem interesse, e os clubes falam muito, mas na hora que eles entendem o que tem que acontecer, eles têm mais dificuldades em aceitar serem controlados. O Fair Play é sempre bom porque limita o vizinho, mas quando começa a te limitar, aí já não é tão bom, né?”, diz o especialista. “Se nem para a criação de uma liga, que era vital para o futebol brasileiro, eles (clubes) conseguiram se coordenar, imagino que seja muito difícil ter regras de controle entre membros que não conseguem conversar.”

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