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MEMÓRIA: Coutinho, o Pelé do Pelé

Releia a matéria escrita pelo repórter Fausto Macedo e publicada pelo Estado no dia 5 de março de 2006

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Foto do author Fausto Macedo
Por Fausto Macedo
Atualização:

Os ingleses, que inventaram o futebol, o chamaram de artista da bola e goleador assassino – de tão perplexos e encantados que ficaram com a atuação do centroavante, de 19 anos. Naquela noite de outubro, 1962, ele fez três gols e levou seu time, o Santos, à vitória por 4 a 2 sobre o Sheffield, que jogou de igual para igual com o campeão mundial.

Três gols que não foram espetaculares, mas iguais pela simplicidade, rapidez e o oportunismo cruel, que eram a sua marca. Um pouco antes, ele ainda um menino (estava com 15 anos), Nelson Rodrigues já o havia batizado de vampiro da bola. Mas isso foi depois que o mito do teatro e da crônica superou uma implicância que tinha com o nome do artilheiro – Coutinho era o seu nome.

Pelé e Coutinho, um das maiores duplas de ataque da história Foto: Arquivo AE

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O problema é que Nelson Rodrigues considerava que um nome desses não podia dar certo, não combinava de modo algum com jogador de futebol – e uma consideração de Nelson Rodrigues tinha peso de jurisprudência e papel passado em cartório.

Bastou a Nelson testemunhar a final do Rio-São Paulo de 59 para deixar de lado o azedume. Coutinho fez dois, um de cabeça, no triunfo por 3 a zero sobre o Vasco da Gama, que tinha Barbosa na meta, e fez o crítico implacável afinal curvar-se à sua categoria.

Antonio Wilson Honório ficou famoso – e também muito temido pelos rivais – como Coutinho, que era como a mãe, dona Antonia, o chamava desde cedo e ele nem sabe até hoje o porquê do apelido.

Foi o melhor companheiro de Pelé – em alguns momentos chegava a igualar-se a ele – e os dois parceiros ideais desfilaram pelos gramados de todos os continentes, sem exceção e por longos anos, arrancando aplausos das multidões com suas peripécias e a tabelinha, que eles criaram assim do nada, sem nunca ter combinado.

“Todo elogio é bem chegado, mas eu nunca me preocupei com isso porque só me preocupei em fazer o melhor, como agora eu tento fazer”, diz o homem de 62 anos, óculos de pouco grau, voz rouca e gestos afáveis que dá expediente no Ibirapuera. O escritório onde ele trabalha é uma sala ampla e despojada, com umas poucas mesas e cadeiras que a decoram.

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É aqui o lugar onde Coutinho – e outros astros dos anos 60 e 70 – conduzem o Mais Esporte, um programa da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação que busca resgatar a dignidade de crianças carentes e a elas garantir boa ocupação nos períodos em que não estão em aula.

COTINHO

Terceiro de cinco filhos de Piracicaba e do casal Waldemar Honório e Antonia Pereira – ele funcionário do engenho central, ela do lar –, Coutinho era Cotinho na infância. A outra vogal só foi incluída quando ele já estava na Vila, onde chegou um tanto assustado no início de 58, com 14 anos.

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A família Honório, gente crédula do interior, morava em Cidade Alta, nas cercanias do campo do XV. Coutinho conta que “nem sabe” como começou a jogar bola, mas lembra que tinha 7 para 8 anos quando pegou gosto pela bola.

Um domingo de 57, o Santos de Pelé, Zito e Pagão foi jogar na cidade. Teve festa porque era assim que o time branco com seu rei negro era recebido por onde passava. O resultado foi 4 a zero, 4 tentos de Pelé é claro, mas isso já não era novidade – a boa-nova mesmo ficou por conta da exibição de um moleque que jogou de quarto zagueiro na preliminar vestindo o uniforme de um certo Palmeirinha, que de semelhança com o Palmeiras da capital só tinha mesmo o nome e a cor da camisa. “Faltou o zagueiro e eu joguei no lugar dele, fiz o gol”, lembra Coutinho. Tinha 13 anos.

A direção do Santos ficou deslumbrada de tal forma com a arte do menino que decidiu leva-lo para a praia. Mas não foi fácil, porque a solidão doía muito no craque. A distância dos irmãos e dos pais e as noites mal dormidas nas dependências da Vila o intimidaram. De modo que em dois meses, nem isso, ele estava de volta a seu povoado natal.

Não demorou muito e lá estavam os cartolas de novo na porta dos Honório com a missão de dissuadi-los. Foi uma reunião nervosa, que avançou por uma tarde inteira. O Santos não queria perder Coutinho e seu futebol por isso os dirigentes se dispuseram a acatar exigências e pleitos do sr. Honório. Dona Antonia, de seu lado, resmungou o quanto pôde. “Vai estudar menino.” Enfim, ela e seo Waldemar se deram por vencidos e autorizaram que o craque partisse.

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ESPELHO

No comando do ataque santista havia um sujeito de corpo franzino que jogava um futebol genial. Vestia a camisa 9, chamava-se Pagão. “Foi muito melhor que eu”, atesta Coutinho, com a reverência devida. “Com ele aprendi muito, foi meu mestre. Ele passou tudo, foi o meu espelho.”

Coutinho admirava verdadeiramente o centroavante – e nele se mirou, no jeito que o titular dominava a bola, o giro de corpo, o tiro certeiro, infalível. Foi nessa época que incluíram, sabe-se lá quem e a mando de quem, a letra u no nome do rapaz. Cotinho virou Coutinho nas páginas esportivas e assim se consagrou como o terceiro maior marcador da história do Santos – acima dele, além de Pelé, só o ponteiro esquerdo Pepe, Canhão da Vila, que fez 405 tentos. Outros dois craques – Dorval na direita e Mengalvio na meia – completaram a mais célebre ofensiva que o mundo conheceu.

No começo, ele treinou na ponta direita. “Faltou um no dia que eu cheguei”, lembra. Osvaldo Vieira, o China, que treinava os juniores, chamou a atenção do técnico do elenco profissional, Luiz Alonso Peres, que atendia por Lula. Seguiu-se esse diálogo, segundo a memória de Coutinho: “Tá faltando um”, China avisou. “Só tem aquele neguinho que chegou de Piracicaba”. E Lula devolveu: “Então traz esse mesmo, se servir muito bem, se não servir manda ele embora.”

O menino não tremeu e pisou pela primeira vez o gramado da Vila que já estava ficando famosa – o Santos tinha sido bicampeão paulista em 55 e 56. Com a contusão que afastou Pagão por três meses, Coutinho logo chegou ao time principal. Ele não tinha exatamente o figurino de atleta. Com seu 1m68 e a obesidade que veio cedo demais a carreira encurtou. Brilhou intensamente por uns seis anos, de 59 a 65, mas aí o peso em excesso e uma dor no joelho que o perseguia sem clemência lhe roubaram o fôlego e a mobilidade. Ainda assim, quando entrava em campo, deixava rastro de gols a sangue frio, que era o seu estilo.

BALANÇA

Disse adeus aos 27 anos, no entanto rejeita com veemência a tese de que foi o peso em demasia que o fez partir antes da hora. Está com 76 quilos. Quando jogava chegou aos 80 quilos e até aos 90, por mais de uma vez. Não admite a negligência que lhe imputam. “Talvez eu não tenha me cuidado muito, mas achava mais fácil jogar quando estava mais gordinho”, afirma ele, que hoje não é balofo.

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“Eu já ficava invocado de ter que ir até o meio de campo cada vez que a gente marcava gol”, revela. “Eu não corria muito, não gostava de correr. Jogava no meu espaço, sabia o que fazer na área grande e na pequena também, não me movimentava mais que isso. Eu fazia gol. ” Diz que a gordura até lhe foi benéfica. “Eu sabia me movimentar e levar o peso que eu tinha no corpo, eu nunca tive problema.”

Lula queria seu elenco em boa forma – na medida do possível porque era desumana a maratona que desafiava aquele time em sua época culminante. O treinador, que era muito gordo, ficava bem perto da balança, com a atenção do sentinela. Numa prancheta ele anotava o peso de cada comandado. Coutinho não se submetia à averiguação.

Com a esperteza que usava para ludibriar os goleiros inimigos, ele fugia da balança. “Eu ficava escondido no banheiro, quando o Lula ia para o campo eu ia lá e marcava 76 quilos na caderneta (passava dos 85 por essa época). Eu nem subia na balança, fiquei 5 anos sem me pesar. O que importa é que no dia do jogo eu não deixava furo, tocava onde tinha que tocar.” Uma vez entregou-se ao regime, mas o resultado não foi o esperado. “Perdi bastante peso e não joguei nada.”

TABELINHA

Morou com Pelé, primeiro na Vila e depois na pensão da finada dona Georgina, à rua Euclides da Cunha. Dividiam o mesmo quarto. A quem pensa que no silêncio da noite eles tramavam grandes jogadas para o dia seguinte, Coutinho faz uma confidência. “O Pelé dormia muito, não dava tempo de conversar. A gente não combinava nada. O Pelé tinha sonambulismo, ele levantava de madrugada e ficava gritando é gol, é gol. Tinha que ser o rei mesmo, até sonhava com gol. Nasceu pra isso.”

A tabelinha, que os notabilizou, também veio sem ajuste prévio. Não foi de caso pensado, afirma Coutinho. “Quando o Pelé jogava com o Pagão era assim, o Pelé na frente e o Pagão vinha de trás. Quando eu cheguei, o Pelé é quem vinha trazendo a bola, olhava prá mim e eu sabia o que ele ia fazer. Era coisa de jogadores inteligentes.” Jogavam tão harmoniosamente, e até se pareciam dentro daquele uniforme branco, que os oponentes muitas vezes se perdiam e se confundiam – cercavam Coutinho imaginando que ele era Pelé.

O porte, imprópio para um homem de área, não o impediu de marcar muitos gols de cabeça – mesmo quando enfrentava aqueles becões do seu tempo, que aliavam raça à categoria. “Cansei de fazer gol de cabeça”, ele diz. Conta mais de 100. “É questão de saber sair do chão, no momento certo. Não precisa de muita altura, tem que ter impulsão. Subi com o Carabina, o Aldemar, o Djalma Dias, o Bellini, o falecido Mauro, o falecido Ditão. Ganhei deles muitas vezes.”

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Sua arma era o oportunismo. Ficava ali à espreita, perto da pequena área, tocaiando o goleiro. Impiedoso na hora de finalizar. Chutava com a precisão de um perito, o tiro calculado, indefensável no mais das vezes. “Eu jogava com um objetivo. Sabia como dominar, como prender a bola e como girar. Ninguém nota a movimentação do goleiro. Tem que olhar o movimento de corpo do goleiro. Ele não faz que vai para um lado? Prá ele fazer isso ele muda o pé. No que ele muda o pé eu toco.”

Arrematava com os dois pés, a mesma pontaria e sutileza com o direito e o esquerdo. Também fazia gol bonito. “Fiz grandes gols.” Destaca o segundo contra o Benfica, no primeiro duelo da final pelo mundial interclubes, em 1962, para um Maracanã tomado por 100 mil. O Santos ganhou de 3 a 2 do time que tinha Eusébio e Coluna e que havia desbancado o Real de Di Stéfano e Puskas. “Fui dando chapéu, dei 4 chapéus até ficar na cara do goleiro e aí eu bati.”

Muito depois, em 1992, quando foi dirigir o Bonsucesso do Rio, viu-se questionado sobre gols de boa feitura em sua carreira. Aproveitou para reivindicar honraria igual à que deram a Pelé por aquele tento inesquecível contra o Flu, em março de 1961: “Eu também fiz um gol de placa, quero minha placa no Maracanã”, protestou Coutinho. “Gol espetacular o Pelé fazia todo dia, driblava 5 ou 6 todo jogo e fazia gol. Fez isso a vida toda. Mas eu também fiz gol assim, é só passar o teipe do segundo contra o Benfica.”

Até 1970 – com o breve intervalo de quando vestiu a camisa do Vitória (BA) e depois a da Portugesa de Desportos, em 1968, quando fez dupla com Leivinha – , ele defendeu 430 vezes o Santos. Mais de quatrocentos gols fazem parte da sua biografia, 370 pelo time que o consagrou. Cinco vezes ele balançou as redes numa única noite, em 59, contra a Ponte Preta, num 12 a 1 para o Santos que não teve Pelé. Comendas foram muitas. Títulos perdeu a conta, uns 50 pelo menos.

Quarenta vezes serviu ao escrete nacional, mas na única Copa que foi, a de 1962, teve que ceder o lugar a Vavá Peito de Aço. Um mês antes, durante amistoso com o País de Gales, no Pacaembu, Coutinho foi atingido para valer por um daqueles grandalhões desajeitados. Mesmo assim foi convocado. Com 18 anos embarcou para o Chile muito machucado e não teve chance porque o tratamento, lento e precário como era, não o recuperou a tempo. 

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