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Torcida que conduz: o que explica o São Paulo ter sua maior média de público da história no Morumbi

Apesar da escassez de títulos na última década, torcedores abraçam o time, que pode avançar à semifinal da Sul-Americana e já está na decisão da Copa do Brasil

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Por Eugenio Goussinsky

A torcida do São Paulo mudou. Está mais presente. Deixou para trás aquela história de ‘torcer na boa’, que só aparecia quando a equipe estava bem. Nesta temporada, ela lotou o Morumbi como nunca se viu em partidas seguidas, batendo recordes históricos e empilhando uma série de marcas de apoio ao time, mesmo com ele carente de títulos. Ganhou o Paulistão em 2021. Antes disso, a Sul-Americana de 2012. O jejum não deixa de ser um fator de apoio do torcedor, que se junta em fases duras. A contratação de bons jogadores também, como Lucas Moura e James Rodríguez.

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Há outros fatores para explicar tal crescimento e engajamento do são-paulino, como uma gestão mais pé no chão, um diretor do peso de Muricy Ramalho e um treinador, Dorival Junior, sério e sem firulas, um trabalhador. O torcedor sabe fazer essa leitura, entende quando há luz no fim do túnel e apoia. O São Paulo também está se tornando mais popular e menos esnobe, mas nem sempre foi assim.

“O movimento é forte em Heliópolis, com muitos são-paulinos, somente com integrantes da própria quebrada”. A frase é de Bob, apelido do caminhoneiro paulista Marcos de Abreu, de 31 anos, morador da maior comunidade de São Paulo. E não se encaixa à imagem do torcedor tricolor de décadas atrás. Prevalecia, na época, a ideia de que o são-paulino era um aristocrata da elite paulistana.

Torcida empurra o São Paulo na temporada com diversas quebras de recordes  Foto: Alex Silva / Estadão

Passadas mais de quatro décadas, o torcedor tricolor teve sua imagem modificada no futebol. Saiu do sétimo lugar entre as maiores torcidas do País, segundo pesquisa Placar/Gallup de 1983, chegando ao terceiro posto na maioria das pesquisas realizadas desde os anos 90. Tal força acumulada veio à tona neste ano, durante a intensa vibração no jogo contra o Corinthians, que levou o clube à final da Copa do Brasil e que motivou Dorival a declarar após a vitória: “Nunca vi algo assim”.

Antes mesmo desse momento, já eram incontáveis as cenas recentes em que uma multidão de torcedores ensandecidos esperava o ônibus dos jogadores com frases de estímulo.

Quatro décadas ajudaram a tornar o São Paulo, que era popular, em um clube ainda mais popular. Ainda em meio à temporada 2023, o São Paulo atingiu a maior média da história do clube em jogos no Morumbi desde a sua inauguração, em 1960, segundo o arquivo histórico do clube. Nas primeiras semanas de agosto, a média já estava em 43.287 torcedores por jogo, superando o recorde anterior, de 32.787, de 2022.

Alguns motivos podem explicar esses números. Um deles é a necessidade de ganhar um torneio. O torcedor são-paulino resolveu abraçar o time independentemente dos fracassos e das bolas na trave - nos últimos 11 jogos, teve duas vitórias apenas. A chegada de Dorival, com sua simplicidade, também ajudou a unir as partes: torcida, diretoria, elenco e torcida.

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RECORDE

No ano passado, o São Paulo quebrou um recorde de público dos anos 80, quando a capacidade do Morumbi era de 120 mil pessoas, chegando a colocar um total de 1.245.901 torcedores nos jogos no Morumbi, cuja capacidade atual é de 66.795.

Outro recorde, dos vários obtidos pela torcida são-paulina neste ano, é o de quantidade de partidas com mais de 40 mil torcedores no Morumbi, como mandante, claro. Em 2023, o time já chegou a 16 jogos com essa quantidade de público, superando a marca anterior, que era de 12 partidas em 2017. Ou seja, ganhando, perdendo ou empatando, o torcedor estará lá no duelo seguinte.

“De fato, o contingente de torcedor mais humilde do São Paulo, que em número expressivo e contínuo frequenta e apoia o time no estádio, tem arrastado o clube na construção de outro imaginário”, afirma Luiz Henrique de Toledo, antropólogo, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor do livro “Lógicas no Futebol”, de 2022.

Para Toledo, a relação de que o São Paulo era um clube da elite não retrata exatamente uma realidade. Mas essa ideia, somente nos últimos anos, passou a aparecer com mais nitidez, após dois períodos que fizeram o número de torcedores crescer. O primeiro período ocorreu nos anos 90, quando, após dois títulos mundiais e um trabalho de marketing e venda de produtos pelo País, a torcida são-paulina cresceu tanto que, na grande maioria das pesquisas realizadas após 1983, desbancou o Palmeiras da terceira colocação entre os clubes com maior número de torcedores no Brasil.

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Já o segundo ponto de crescimento foi, após o auge, o São Paulo ter ficado muitos anos sem título, entre 2012 e 2021, conforme lembra Toledo. “Se tomarmos engajamento menos no sentido geral de festa e espontaneidade, mas associado à assiduidade, atenção e exacerbação do caráter competitivo nas arquibancadas, os últimos anos têm colocado os são-paulinos como torcedores fanáticos, não em função do caráter lúdico e festeiro, mas obrigatório e sério de participação em função da carência de títulos do time”, afirma.

Esse fenômeno também ocorre quando um time cai para a Série B, quase obrigando o torcedor dessa equipe a se juntar em solidariedade à bandeira e história do clube.

IMAGEM REDESENHADA

Dos três clubes que, na maioria das pesquisas nos últimos anos, se colocam nas primeiras colocações entre os que mais têm torcedores, Toledo destaca que o Flamengo se beneficiou por muito tempo de uma base torcedora espalhada por todo o território nacional. Facilitou ainda, para o crescimento do número de flamenguistas, a posição estratégica do Rio como capital Federal e pelo engajamento de comunicadores, formadores de opinião, músicos e variados artistas e intelectuais.

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Toledo lembra que o Corinthians, por sua vez, carregou a fama de time sofredor, valor que está na “raiz cristã” da cultura popular na sociedade brasileira. “O Corinthians lançou mão sem receios e limites dessa identidade, que beneficiou e fortaleceu a imagem de resiliência ostentada por seus aficionados pobres e ricos. ‘Bando de loucos’ é outro bordão que pegou com eficácia no discurso genérico do torcedor corintiano”.

Já o São Paulo, ressalta Toledo, historicamente apostou em alguns bordões, como “O mais querido”, o “Clube da fé” e aquele que fez “a moeda cair de pé” (em relação ao título de 1943, quando dirigentes de Palmeiras e Corinthians falavam em um cara e coroa para ver quem ficava com o título, que foi para o São Paulo).

Hoje, essas referências podem ser consideradas ultrapassadas. Em 2014, pesquisa Ibope registrava que o São Paulo era apenas o quarto colocado em número de torcedores nas camadas mais ricas da população.

“Embora essas imagens tenham alguma eficácia e contribuído para a formação de um discurso torcedor, parece que hoje elas podem ter sido suplantadas pela recente repopularização do clube, que produz outros valores próximos ao popular, redesenhando sua imagem. Então, torcidas crescem obviamente indexadas aos desempenhos esportivos e de plantel, mas também são dependentes dessas sínteses simbólicas”, ressalta.

A presença da torcida no Morumbi tem sido fundamental para o desempenho do time na temporada Foto: Alex Silva / Estadão

OS SÓCIOS E AS “QUEBRADAS”

Mas, além de preços populares em boa parte dos jogos, que trouxe ainda mais o torcedor de classes sociais menos favorecidas, o São Paulo tem aproveitado essa fase para, em pouco tempo, obter mais receitas com o programa de sócio torcedor. Nesta Copa do Brasil de 2023, após a vitória sobre o Palmeiras, nas quartas de final, o clube obteve mais de 23 mil novos apoiadores em um período de cerca de dois meses. Passou de 35 mil para mais de 58 mil sócios torcedores, em diversos planos.

“Os benefícios dos programas de sócio torcedor, em sua maioria, estão muito ligados às vantagens nas aquisições de ingressos, além das ações de interação que o clube deve se atentar para melhorar a experiência do torcedor durante e fora das partidas. Contudo, um bom desempenho nos jogos e a busca por novos reforços de qualidade (no caso as vindas de Lucas Moura e James Rodríguez), como o São Paulo apresentou, acabam atraindo ainda mais a torcida para que viva esse momento mais de perto e com o sentimento de pertencimento”, diz Fábio Wolff, especialista em marketing esportivo e sócio-diretor da Wolff Sports.

E é pelas “quebradas” de locais como Heliópolis, que essa nova imagem do torcedor tricolor pulsa, ao som do rap, do funk, nas rodas de samba e dos churrascos pelos bares da rua 2 de fevereiro e na rua do clube Ratatá, no Copa Rio. Durante as conversas regadas a cerveja, a trajetória do clube e da torcida se mistura à identidade dos moradores. E estimula as ações sociais, conforme relata o torcedor, e morador da comunidade, Bob.

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“A torcida do São Paulo cresceu dentro de Heliópolis também por causa do trabalho que vem sendo feito pela Família Heliópolis 1972, que é a Torcida Independente do São Paulo Futebol Clube. Dentro da comunidade, nós da Torcida Independente Heliópolis fazemos ações sociais em datas festivas como Dia das Crianças, Páscoa e Natal. Temos o projeto ‘Domingo sem fome’, que foi criado em plena pandemia. Todo domingo estávamos na rua entregando marmitex, sopa, roupas, cobertores etc. Fizemos ações sociais na rua também, atendendo aos mais necessitados”, diz.

Esse fortalecimento do caráter popular trouxe maior engajamento, conforme destaca Bob. “A torcida são-paulina mudou aos olhos de todos ultimamente, apoiando, incentivando, estando ao lado do time, salvando de rebaixamento e acreditando no elenco. Definitivamente, ela se tornou a ‘torcida que conduz’ a equipe, como prega o torcedor. Viramos um time popular, com mais de 40 mil pessoas por jogo, caravanas históricas. Tudo isso vem ajudando o São Paulo a se tornar popular”, destaca.

O futebol por lá é uma manifestação cultural, alimentada pela música, pela letra e pelos versos de poetas, escritores e compositores locais, como o são-paulino Fanti, apelido de Josiano Antero de Freitas, de 45 anos, professor de português. Fanti também é rapper e escritor. Em sua verve artística pulsa a paixão pelo São Paulo, que cada vez mais representa um estilo de vida. Ele testemunhou todo esse avanço da torcida.

“A torcida são-paulina cresceu bastante por aqui, antes tinha um bom número de torcedores, lembro da galera nos anos 90, tinha um pessoal, mas era bem menos. Só que agora tem a galera que montou vários grupos de torcedores, se organizaram muito mais. Na hora dos jogos, tem a maior festa, eles têm camisas próprias, fazem churrasco, alugam espaços, reúnem amigos, familiares, é bem interessante. Cresceu bastante, principalmente entre os jovens.”

Na história de vida de Fanti, a identificação com o São Paulo é algo tão essencial como o ritmo e a rima são para o rap. “Eu me identifico com o São Paulo por sua garra, história e os jogadores que deixaram um legado. Os craques que fizeram história. É um clube marcante. É uma coisa difícil de explicar, essa coisa começa quando criança. E aí quando você vai ver, já foi”, completa.

Os cinco maiores públicos do São Paulo em 2023:

  • São Paulo x Corinthians - Copa do Brasil - 62.093 torcedores - 16/08
  • São Paulo x Santos - Brasileirão - 58.127 torcedores - 16/07
  • São Paulo x Vasco - Brasileirão - 57.399 torcedores - 20/05
  • São Paulo 0 x 2 Palmeiras - Brasileirão - 56.871 torcedores - 05/07
  • São Paulo x Bahia - Brasileirão - 56.078 torcedores -30/07
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