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Copa do Mundo 2018: Neymar e a transgressão

O futebol é uma espécie de metáfora da sociedade. Reflete, como um espelho, e numa escala simplificada (portanto mais nítida) quem somos e o que sentimos na vida em sociedade. Por isso nos representa tão bem. E nos apaixona.

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Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Vamos  dizer abruptamente: a transgressão NÃO vale. A lei deve ser cumprida e ser igual para todos. No campo e fora dele.

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Mas - e sempre existe um "mas" - será que é assim mesmo? Será que você acredita, leitor, que a lei vale para todos? Que é aplicada do mesmo jeito, seja você rico ou pobre, de direita, de centro ou de esquerda? Ou a lei teria sua zona de sombra, dentro da qual cabem interpretações, chicanas, saídas pela tangente, malabarismos jurídicos?

Bem, se vivemos no mundo adulto sabemos que é assim que funciona. Hoje mesmo o noticiário político compara o Supremo Tribunal Federal a um transatlântico desgovernado, que navega em círculos dadas as interpretações da lei divergentes dos seus membros quando aplicadas a "amigos", "inimigos" ou "indiferentes".

O futebol é uma espécie de metáfora da sociedade. Reflete, como um espelho, e numa escala simplificada (portanto mais nítida), quem somos e o que sentimos na vida em sociedade. Por isso nos representa tão bem. E nos apaixona.

As simulações de Neymar andaram na berlinda. Não se toleram mais atitudes desse tipo e elas prejudicam o jogo, o time e a todos nós. São uma afronta. Isso virou consenso no país da polarização de ideias.

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Será mesmo?

Lembro de maneira nítida quando se aceitavam transgressões às leis do futebol. Não apenas se aceitavam, mas eram elogiadas quando "bem feitas". Isto é, quando escapavam à observação do juiz.

O maior de todos os tempos - Pelé, claro - era um especialista. Quando ainda bem jovem entendeu que não teria muito futuro pela frente diante de zagueiros botinudos, e que agiam sob beneplácito dos árbitros, passou a revidar. Só que o fazia "com arte". Atingia duro, sem ser percebido. Passou a ser respeitado. E, dessa forma, conseguiu espaço para exibir toda a sua arte.

Pelé também podia ser um simulador. Lembro de quando enganchou seu braço no braço de um goleiro e foi ao chão. O juiz deu pênalti a favor do Santos.

Lembro de outro pênalti cavado, e este de maneira ainda mais sutil. A bola estava dominada por um zagueiro situado atrás do goleiro adversário. Pelé, de repente, avançou em direção à linha de fundo, como se o adversário tivesse perdido o controle da bola. Apavorado, o goleiro o derrubou, sem olhar para o que estava acontecendo (ou seja: nada. A bola continuava sob domínio do zagueiro). Pênalti assinalado. O craque transgredia - neste caso, dentro da lei. Mas, imagine a gritaria se esse lance se desse hoje, e o que não se falaria sobre sua falta de ética.

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Passemos ao segundo melhor do mundo, Diego Armando Maradona. Na Copa de 1986, Dom Diego acabou com a Inglaterra com dois gols. Um deles é considerado o mais bonito da história das Copas. Ele pegou a bola em seu campo e foi enfileirando adversários até chegar à área, driblar o goleiro e enfiá-la na rede. Gênio.

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O outro foi o gol conhecido até hoje como o da "mano de Diós". Bola cruzada na área, o baixinho Maradona sobe e divide com o goleiro. Marca. De cabeça? Sim, foi o que viu o juiz e todos os que assistiam ao jogo. Só que foi com a mão. Não aquela mão vulgar, aquele braço que se destaca do corpo e corta a bola, como num jogo de vôlei. Procure no YouTube: Dieguito esconde a mão atrás da cabeça de modo que precisamos rever o lance várias vezes até percebermos que o gol foi feito com a mão. Quando questionaram Maradona, ele saiu-se com esta: se foi mão, foi "la mano de Diós". Cínico, ainda por cima?

Não é o que acham seus compatriotas ou seus seguidores mundo afora. Já fizeram pesquisas na Argentina e os hermanos acham o gol de mão ainda mais genial do que aquele totalmente legal, em que ele dribla vários ingleses até enfiar a bola no gol.

Por quê? Por muitas razões. Uma delas, suponho, porque existe esse gozo, hoje meio inconfessável, em enganar o adversário. Segundo, porque esse adversário era a Inglaterra, que pouco antes havia massacrado a Argentina numa guerra real e injusta - a das Malvinas.

A ferida estava aberta, era recente, e o gol da "mano de Diós" era como uma desforra simbólica contra a grande potência européia que matara muitos argentinos num combate desigual.

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De modo que, antes de julgar Neymar e nos considerarmos a todos anjos de pureza, convém meditar sobre a complexidade da vida e os ambíguos sentimentos humanos.

Expressos, como de hábito, nesse grande teatro que é um campo de futebol.

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