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É falso que arroz contaminado com vírus do Paquistão tenha sido liberado para venda no Brasil

Boato circula desde 2017 em vários países da América Latina; Ministério da Agricultura diz que nunca foram observadas contaminações em arroz que trouxessem riscos ao consumidor

Por Clarissa Pacheco

Não, um carregamento de arroz contaminado com um vírus raro do Paquistão não entrou no mercado brasileiro com ajuda do governo Lula. Este é um boato antigo que circula na internet pelo menos desde 2017, principalmente em países da América Latina, e que já foi desmentido em diversas localidades: só no Panamá, a alegação foi apontada como falsa pelo governo três vezes entre 2017 e 2019. No Brasil, o Ministério da Agricultura e Pecuária disse que a informação não procede e que nunca foram identificadas contaminações em arroz que pudessem trazer riscos ao consumidor.

Na verdade, o arroz Dana, cuja foto de um pacote de 1 kg aparece no conteúdo viral, teve a comercialização autorizada pelo governo do estado de Zulia, na Venezuela, em março de 2017. Na época, o governador Francisco Javier Arias Cárdenas publicou um decreto no Diário Oficial do estado que liberava a entrada de produtos essenciais em Zulia, com dispensa dos trâmites legais, para fazer frente a uma crise de abastecimento. Isso não significa que o arroz estava contaminado. Na época, cidadãos reclamaram da baixa qualidade do produto, que tinha grãos quase transparentes.

 Foto: Reprodução

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Leitores do Estadão Verifica pediram a checagem deste conteúdo através do WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

No Brasil, a alegação presente no conteúdo é a mesma que circulou em outros países, mas traduzida para o português. O texto diz que um funcionário de alfândega informou a chegada de um carregamento de arroz que não passou pelos padrões de saúde porque tem um vírus ou bactéria que só é visto no Paquistão. Outra adaptação para o Brasil foi inserir o governo Lula como parte do problema: “O arroz é de lá e eles ‘conseguiram’ com o governo petista liberação da mercadoria que já se encontra no mercado brasileiro”.

Em nota, o Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil informou que as informações da publicação não procedem. “Todos os produtos de interesse agropecuário são fiscalizados na importação para assegurar a qualidade, identidade e segurança. A depender da origem e do tipo de produto, análises são realizadas para verificar se os produtos atendem aos padrões de qualidade brasileiros”, diz a nota. O ministério acrescentou que, “anualmente são coletadas amostras de produtos para análises de contaminantes químicos ou biológicos que possam trazer risco à saúde” e que, no caso do arroz, “nunca foram observadas contaminações que pudessem trazer qualquer risco ao consumidor”.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que não recebeu notificação suspeita do arroz Dana, seja interna ou pelas redes de monitoramento. Ele não aparece na lista de produtos registrados no site da Anvisa, nem na de produtos irregulares.

Importado por empresa de Maracaibo, na Venezuela

Uma pista de que o boato não havia se originado no Brasil é o fato de as informações sobre o produto não estarem escritas em português na embalagem, e sim em espanhol: logo abaixo da marca do arroz, se lê “Calidad Superior” (Qualidade Superior, em português) e, ainda mais abaixo, “Contenido Neto” (Conteúdo Líquido, em português).

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Uma busca reversa pela imagem levou ao site da revista Agricultura & Mar, com sede em Lisboa, Portugal, que também desmentia, em julho de 2018, que o produto contaminado tivesse entrado ilegalmente na Ilha da Madeira.

Além da frente do pacote, o site também publicou o verso da embalagem, que mostrava que o arroz Dana, na verdade, não tinha sido exportado pelo Paquistão, e sim por uma empresa dos Emirados Árabes, a TradiGrain F. T. DMCC. Já a importação tinha sido feita pela empresa Inversiones 361 Zulia, com endereço da cidade de Maracaibo, no estado de Zulia, na Venezuela, que faz fronteira com a Colômbia.

O Verifica, então, buscou por notícias envolvendo o arroz Dana e a cidade de Maracaibo, chegando a uma notícia publicada pelo site venezuelano Vida Agro que falava sobre críticas à qualidade do arroz encontrado nas prateleiras de Zulia em agosto de 2017. O site confirmava que o produto havia sido importado e empacotado por empresas no estado, depois de ser exportado pelos Emirados Árabes.

Decreto estadual de Zulia liberou importação sem seguir trâmites legais

O decreto que liberou a entrada do arroz Dana no estado de Zulia, na Venezuela, foi assinado pelo governador Francisco Javier Arias Cárdenas e publicado a Gaceta Oficial del Estado Zulia em 11 de março de 2016. O decreto 1.035 implementava medidas para “colocar bens essenciais, serviços, medicamentos, peças sobressalentes, autopeças, produtos de limpeza e higiene pessoal no mercado interno do Estado de Zulia”.

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Na prática, o decreto dispensava, com autorização prévia do presidente, “as formalidades, procedimentos e requisitos para a importação e nacionalização dos cinquenta (50) artigos” que seriam comercializados no estado de Zulia. Os dados de chegada das mercadorias apenas seriam informados pelo governo ao ministério competente.

O governador usou como base para seu decreto estadual os decretos de situação de emergência da presidência da Venezuela e o argumento de que os cidadãos tinham direito a ter acesso a bens essenciais. O arroz Dana foi um desses produtos liberados e acabou sendo alvo de críticas: cidadãos diziam que tinham pago caro pelo arroz, que era quase transparente.

Na época, a fronteira entre Venezuela e Colômbia estava fechada, o que impedia a entrada de produtos colombianos no país, e a decisão do governador de Zulia foi duramente criticada pela Cámara de Integración Económica Venezolano Colombiana (Cavecol), que considerou o decreto de legalidade “discutível” e afirmou que aquela não era a maneira correta de reabrir o comércio entre os dois países.

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O site independente RunRun.es publicou em junho de 2016 que, graças ao decreto, produtos colombianos enchiam as prateleiras de supermercados de Zulia com preços muito acima dos regulamentados pelo governo de Nicolás Maduro.

Outros países

Desde 2017, a falsa alegação de que um arroz vindo do Paquistão e contaminado por um vírus raro se espalha por diversos países. No Panamá, a alegação foi desmentida pelo menos três vezes – em 2017, 2018 e 2019.

A falsa história do arroz contaminado também foi parar na Costa Rica, Portugal, Colômbia, Argentina e, no ano passado, na própria Venezuela.

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