‘A paz é um processo que precisa de crédito'

Fracasso de acordos e desilusão com líderes são raízes da nova onda de violência entre árabes e israelenses, mas há esperança nos mais jovens, avalia líder religioso

PUBLICIDADE

Por Renata Tranches
Atualização:

A mais recente onda de violência entre palestinos e israelenses emergiu de frustrações de ambos os lados que levaram a uma situação em que “utopias e projetos são soterrados pelo pragmatismo e pelo imediatismo”. A avaliação é do rabino Nilton Bonder, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil no Rio, em entrevista ao Estado.

Segundo o líder religioso, alcançar de fato a paz na região é um processo que “precisa de crédito” e deve ser conduzido por pessoas que deixem de privilegiar apenas o cálculo político. “Há desesperança com a posição política do governo israelense e seus assentamentos, mas há também com a liderança palestina.” 

PUBLICIDADE

Sobre o processo para estabelecer uma negociação bilateral duradoura, Bonder, assim como muitos observadores, avalia que o melhor momento foi durante as conversas dos Acordos de Oslo. Ali, segundo ele, havia a construção de uma utopia conjunta e realista, mas a chance foi perdida. “Oslo representou uma janela de oportunidade. E ela se fechou e instituiu-se o protocolo do pragmatismo e da desconfiança.”

Apesar do momento turbulento, Bonder é otimista sobre as novas gerações. “Talvez estejamos aguardando o fim de uma geração de líderes que claramente fracassaram.”

Quais são as particularidades deste momento em comparação com ondas de violência anteriores? 

É um movimento caracterizado por ódio, já que é necessário mais desse sentimento para poder esfaquear ou atropelar uma pessoa do que para puxar um fio e detonar-se a si mesmo ou jogar pedras. É curioso que facas se tornaram objeto de tensão social também no Rio de Janeiro recentemente. Armas brancas refletem frustração, premeditação e fúria. E são ataques na maioria a civis, porque muitos dos soldados atacados o foram em situações de vida rotineira e quando não estavam em serviço. As Intifadas anteriores eram movimentos populares de revolta nos moldes de demonstrações violentas. Aqui, acompanha o modelo de recrutamento em redes sociais e o método no feitio do Estado Islâmico.

Como o sr. avalia o perfil dos jovens agressores envolvidos? 

Publicidade

Problemas políticos encobrem problemas sociais. Assim como jovens carentes brasileiros assaltam muitas vezes não por fome, mas para obter um tênis e atender a outro tipo de pressão, esses jovens esfaqueiam não porque estejam no topo da consciência política ou por militância pela independência da Palestina, mas são mobilizados por frustração social e baixa expectativa em relação ao futuro. Há desesperança com a posição política do governo israelense e seus assentamentos, mas também com a liderança palestina. Há, acima de tudo, incitamento utilizando dois fatores: o sentimento de humilhação provocado pela dominação experimentada em checkpoints (postos de revista e verificação de documentos) na redução de livre movimento e a sensação de submissão que advém da percepção de que se perderá poder sobre os lugares sagrados. No ano passado, em manifestações em Israel, parte da população israelense demonstrou insatisfação com o atual governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. 

Com a questão palestina dominando as políticas públicas em Israel, falta atenção para outras áreas?

Há pouco, estive em Israel e nos territórios palestinos fazendo entrevistas com lideranças sobre o conflito para o filme Alma Imoral, que estou fazendo com o diretor Silvio Tendler, e a percepção de ambos os lados é de que a vida ocorre longe da narrativa política de “dois Estados”. Ambos os lados priorizam a qualidade de vida e uma atitude marcada por pragmatismo. Ou seja, sem negar a existência de um impasse político e histórico, os que vivem o dia a dia querem prosperidade e liberdade mais do que a narrativa política dos líderes ou mesmo da comunidade internacional e seus interesses dissimulados na região. A sociedade israelense tem sido tragada pela cultura política do Oriente Médio que não é a de perseguir ideais, mas de fazer o que é possível. Esse princípio está na manutenção das ditaduras após a Primavera Árabe, seja no Egito e Síria, ou na realidade do Irã, da Arábia Saudita ou do Iraque, e na proliferação de conflitos e milícias por toda a região. Isso é somado à incapacidade do Ocidente em liderar qualquer processo de estabilização. Os israelenses nesse contexto não veem os palestinos como protagonistas na tal paz, mas como coadjuvantes dela. E seguem um pragmatismo que não precisa ter os contornos caricatos de Binyamin Netanyahu ou da direita, mas que procrastina em relação a um processo definitivo.

O quanto está dividida a política israelense atualmente?

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Ajuda a entender nosso próprio momento brasileiro. Quando não há líderes na oposição e há um “empate-empaque” nas alternativas políticas, não acontecem as reformas tão necessárias. A ausência de líderes locais capazes de avalizar pactos impopulares e a instabilidade da região como um todo alimentam de forma robusta o conservadorismo, da direita e do fundamentalismo. Some-se a isso a frustração também do lado israelense com processos de paz, seja nas escaramuças com o Hamas (movimento radical islâmico) na Faixa de Gaza, seja na percepção de incapacidade de convivência, amplificadas agora por ataques a qualquer um por qualquer um. Isso faz com que as utopias e projetos sejam soterrados pelo pragmatismo e pelo imediatismo.

Por que as negociações de 2014, mediadas pelos Estados Unidos, não deram certo? O sr. acha que o governo Barack Obama voltará a tentar uma nova mediação?

A paz é um processo que precisa de crédito. Diante da instabilidade regional e também das fragilidades política e econômica dos avalistas tradicionais (EUA e Europa) não há um ambiente propício. Acho que a guerra na Síria consagrou a percepção de que os EUA, além de não serem eficazes, representam um amálgama de interesses que não se mostram consistentes. A paz se torna um conceito ingênuo quando a moeda principal são os cálculos políticos que não levam em conta o melhor resultado para os povos, mas para os próprios interesses e sobrevivência. Essa conta não fecha, seja na paz, seja na economia. Netanyahu se sobressai como um personagem dessa realidade, mas ele tem, infelizmente, contrapartidas em todas as nações à sua volta.

Publicidade

A melhor oportunidade para um acordo real entre palestinos e israelenses foi com Ehud Barack, em Oslo, em 2000?

Com certeza. Havia, naquele momento, a construção de uma utopia conjunta de israelenses e palestinos. Era uma utopia realista que mesclava tanto os resultados da Primeira Intifada – quando a resistência palestina como um ato de sublevação interna, diferentemente das guerras anteriores contra nações, fez tremer percepções em Israel – quanto a capacidade visionária da esquerda israelense. Mas a capacidade visionária foi assassinada e a violência da Intifada, de uma demanda legítima, se fez ameaça. Oslo representou uma janela de oportunidade. E ela se fechou e institui-se o protocolo do pragmatismo e da desconfiança.

Falta uma referência de paz para os jovens dos dois lados que assistiram mais a episódios de violência? 

Sim, a paz foi substituída apenas por um desejo de solução. Isso tira muita força perante a sociedade israelense para promover concessões. E isso é a garantia de mais violência e de inovação na violência e na radicalização. Vislumbrei brevemente uma ponta de esperança num evento que fizemos no Midrash Centro Cultural por iniciativa do Ministério da Justiça. Num debate entre jovens palestinos e israelenses, pude perceber que há outra juventude, que não tem como primeira instância o desespero e a violência. Foi um debate forte, mas nele aparecia o fato de que para os jovens o futuro é muito grande e relevante para ser procrastinado. Talvez estejamos aguardando o fim de uma geração de líderes que claramente fracassaram, seja no contexto local, seja no internacional.

O sr. poderia falar um pouco sobre a base religiosa dos assentamentos?

Os assentamentos em si não têm uma base religiosa, mas política. Manipulam questões e populações religiosas para atender a objetivos políticos. As raízes judaicas se espalham não só por territórios palestinos, mas por uma longa área onde a narrativa bíblica não reconhece fronteiras do mundo atual. Não é viável querer soberania sobre esse passado. Mas as autoridades palestinas políticas e clericais não ajudam. Nessa última onda de violência, o uso da religião incita não só os jovens palestinos a esfaquear, mas recrudesce o fanatismo religioso israelense. A tentativa dos clérigos palestinos de declarar Al-Aqsa como toda a esplanada do Templo, incluindo também o atual Muro das Lamentações, é uma provocação incendiária. Esse é o lado mais louvável da soberania israelense. Nunca na história houve tanta liberdade religiosa na Cidade Velha. E é fato que, para o judaísmo, a região onde estão as mesquitas é não o terceiro lugar mais sagrado, como é para o Islã, mas o primeiro. Dominar a cidade e não ter acesso a seu lugar mais sagrado, sob controle total e discriminador das autoridades palestinas, revela o potencial que a sociedade israelense tem para a paz. É fato. E os palestinos têm de fazer melhor uso desse potencial não como um ardil, mas para avançar em seu sonho de autonomia e liberdade.

Nilton Bonder é rabino, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil no Rio e diretor do Midrash Centro Cultural. É autor de vários livros como Segundas Intenções - Vestindo o Corpo Moral e peças de teatro, como A Alma Imoral. Doutor em Literatura Hebraica pelo Jewish Theological Seminary, recebeu o Jabuti de Literatura, categoria Religião, em 2000. 

Publicidade

Para lembrar

A atual de onda violência em Israel e territórios palestinos começou no fim de setembro, após autoridades israelenses restringirem o acesso de palestinos à mesquita de Al-Aqsa, na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém. Em seguida, teve início uma série de ataques a faca praticados por jovens palestinos contra israelenses. Em quase todos os casos, forças israelenses reagiram aos atentados. Até sexta-feira, o número de israelenses mortos nestes ataques era de 11 e, na resposta de Israel, o de palestinos era de 60. Nesse intervalo, foguetes foram disparados da Faixa de Gaza e Israel reagiu bombardeando o território. Todos esses eventos acirraram a tensão na região. Como resposta, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, anunciou medidas rígidas que incluíram “maior rapidez na demolição de casas dos terroristas” e afirmou que o país “lutará até a morte contra o terrorismo palestino”. O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, por sua vez, ao falar para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, disse que a situação nos territórios palestinos é a “pior e mais crítica” desde 1948.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.