Afegãos tentam reinício na Europa três meses depois de fuga do Taleban

Muitos permanecem em campos de refugiados sem saber se poderão ficar nos países onde pediram asilo

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Foto do author Thaís Ferraz
Por Thaís Ferraz e Isabela Fleischmann
Atualização:

Quando o Afeganistão colapsou, a empresária Nilofar Ayoubi, de 26 anos, tinha 40 funcionários, a maioria mulheres, sob sua direção. Dona de negócios de tapeçaria, decoração e roupas, Nilofar também era editora do jornal AsiaTimes e coordenava uma ONG de apoio a mulheres no país. Retirada às pressas de Cabul, perdeu tudo, e hoje tenta recomeçar a vida na Polônia.

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Durante os dias de caos no aeroporto de Cabul, afegãos que conseguiram deixar o país foram considerados de sorte. Três meses depois, a realidade é mais complexa: muitos permanecem em campos de refugiados ou bases militares, sem saber se poderão permanecer nos países em que estão. Outros ainda lutam por vistos. Para alguns, ainda há a preocupação com a família deixada para trás.

No processo de retirada, entre os dias 15 e 30 de agosto, potências estrangeiras transportaram mais de 120 mil pessoas para fora do país. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, até o fim do ano, meio milhão de afegãos atravessem as fronteiras com os países vizinhos, Paquistão e Irã. 

Nilofar Ayoubi (E), em uma foto de família, tirada antes de ela fugir do Afeganistão com o marido e três filhos Foto: Arquivo Pessoal

Ativista e feminista, Nilofar era um alvo para o Taleban. Pouco antes do colapso de Cabul, ela começou a receber ameaças pelo Twitter.  “Fizeram photoshop e colocaram minha foto em um corpo de uma mulher sendo levada à execução pelo Taleban”, afirmou ao Estadão. “Eles disseram ‘não se preocupe, quanto tomarmos Cabul vamos te matar, você não voltará a trabalhar’.”

Fuga do Afeganistão

Na madrugada de 15 de agosto, Nilofar recebeu a ligação de uma amiga que havia conseguido fugir para um país seguro. “Ela me disse para deixar o Afeganistão imediatamente porque eu estava na mira e os assassinatos já tinham começado”, conta. “Eu não planejava deixar o país. Foi uma decisão muito difícil para mim, mas no fim eu não tive escolha por causa dos meus filhos.” Nilofar é mãe de três crianças, de 5, 3 e 1 ano. Com a tomada de poder, suas contas bancárias foram confiscadas e suas propriedades, tomadas pelo Taleban. “Agora tudo pertence ao governo e somos os traidores”, diz.

Com ajuda de organizações internacionais, ela conseguiu fugir, com o marido e os filhos, para a Polônia. No país, refugiados podem receber proteção internacional, que inclui título de residência ilimitada e autorização de trabalho. Eles também ganham cartões de residência e um documento de viagem que permite o translado na União Europeia e outros países.

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Desde a queda de Cabul, o país recebeu 1.137 refugiados afegãos. Parte deles foi encaminhada para acampamentos de imigrantes, como Nilofar. Por semanas, ela e a família viveram em um pequeno quarto com roupas de segunda mão. Durante este tempo, não havia certeza de que eles poderiam permanecer na Polônia. A espera terminou em meados de setembro, quando, com a ajuda de amigos, a família conseguiu um apartamento.

Ozair Akbar, de 26 anos, ainda não teve a mesma sorte. Alvo do Taleban por trabalhar com várias organizações internacionais diferentes, o financista conseguiu deixar Cabul no dia 22 de agosto.

“A semana (da tomada do poder) foi terrível. Eu não saí de casa”, conta. Na noite de 21 de agosto, Ozair recebeu uma ligação que o chamava ao aeroporto. Ele conseguiu embarcar, mas não levou a família. Desde então, está na Itália, onde solicitou permanência. “Já se passaram três meses e ainda estamos esperando.” 

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Ozair foi um dos afegãos resgatados pela Itália, que enviou um avião militar para retirar colaboradores de seu governo do Afeganistão. Outros afegãos chegaram ao país europeu por meio de voos comerciais ou por terra. 

Sediqa Mushtaq, de 35 anos, deixou o Afeganistão no dia 22 de setembro, e, com a ajuda de um amigo jornalista, chegou também à Itália. Como uma ativista feminista e empreendedora, Sediqa se envolveu em muitos programas políticos, o que a tornou um alvo de ameaças do Taleban. Por isso, resolveu fugir. "Minha vida e da minha família estavam em perigo", disse ao Estadão. Ela lembra que o Taleban "jamais deu lugar para mulheres no governo anterior". 

Sediqa Mushtaq, de 35 anos, deixou o Afeganistão no dia 22 de setembro, e, com a ajuda de um amigo jornalista, chegou à Itália Foto: Sediqa Mushtaq/Arquivo pessoal

Sediqa e seu marido conseguiram vistos humanitários em menos de uma semana e ONGs italianas ajudaram o casal a encontrar trabalho. "Eles traduziram nossos documentos de histórico de educação e vão mandar para várias organizações e departamentos em breve", disse. Os pais e o resto da família de Sediqa, no entanto, ainda estão no Afeganistão. E, segundo a refugiada, o governo Taleban "é ainda pior do que a primeira vez que tomou o poder". 

Desde junho deste ano, a Itália recebeu mais de 5 mil afegãos. O governo concede aos refugiados moradia e serviços básicos, como acesso ao sistema de saúde. Em parceria com outros países europeus, a Itália organiza a redistribuição de afegãos para Espanha, França, Eslovênia e Áustria. 

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Ex-governadora de distrito no Afeganistão

A afegã Guljan Samar, de 31 anos, estava trabalhando em uma das províncias remotas do Afeganistão, Daikundi, onde coordenava um grupo de empresas, quando foi nomeada governadora do distrito.Após a fuga do presidente Ashraf Ghani e a queda do Afeganistão, ela esteve na guerra contra o Taleban por dois dias. “O distrito em que fui governadora foi o último a cair. Fui a última a enfrentar o Taleban com as forças sob meu comando. Defendi meu salário e minha terra. Mas infelizmente tudo acabou”, disse ao Estadão.

Ela conseguiu fugir com o marido, com ajuda de uma agência americana que trabalha para auxiliar afegãos em situações de vulnerabilidade. “Consegui escapar do cerco do Taleban usando roupas de homem. Fiquei cercada por três dias para chegar ao mais básico das minhas possibilidades. Eu não tinha comida. E consegui fugir a pé pelas montanhas com meu marido e meus cinco seguranças”, afirma Guljan.

Hoje, ela está em um acampamento para refugiados na Albânia enquanto aguarda para ser integrada ao país dos Bálcãs. Ela ainda não tem visto humanitário. Uma das mais jovens empreendedoras do Afeganistão, ela não tem permissão para trabalhar em seu novo país.

Além disso, teme pela segurança de sua família, que continua no Afeganistão. “Infelizmente, um de meus irmãos e dois seguranças foram capturados pelo Taleban. Não sei a informação exata, nem sei onde está o resto da minha família, meus irmãos e sobrinhos”, diz.

Guljan Samar, ex-governadora de Daikundi, no Afeganistão; hoje ela está na fronteira com a Albânia Foto: Arquivo pessoal

Uma história antiga

A crise não é um desenvolvimento recente. Da década de 1970 para cá, a diáspora afegã passou por quatro fases. A primeira, iniciada com o golpe militar do Partido Democrático do Povo do Afeganistão contra o governo Daoud, teve início em 1978 e provocou uma fuga em massa de refugiados do grupo étnico pashtun, o maior do país. Eles eram em sua maioria camponeses pobres, agricultores de subsistência, pequenos proprietários de terras e clérigos.

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Com a retirada das tropas soviéticas, entre 1986 e 1989, e a consequente intensificação dos combates entre os grupos mujahideen, uma segunda leva de afegãos deixou o país. Em contraste com a primeira, esses refugiados eram principalmente empresários e profissionais urbanos. Muitos se estabeleceram no acampamento Nasir Bagh, na província de Peshawar, no Paquistão. 

A terceira fase se deu quando o Taleban tomou o poder pela primeira vez, em 1996. Durante este período, cerca de 2 milhões de refugiados afegãos fugiram para o Paquistão e cerca de 1,5 milhão foram forçados a migrar para o Irã. Os refugiados consistiam principalmente de minorias religiosas e muçulmanos xiitas.

A quarta fase aconteceu logo após os atentado de 11 de setembro de 2001, quando o medo de retaliação dos EUA, o aumento das instabilidades e desastres ambientais geraram grandes fluxos de refugiados afegãos -- que, em sua maioria, acabaram voltando ao país nos anos seguintes.

Como consequência, o Afeganistão é hoje o terceiro país com mais refugiados pelo mundo. De acordo com dados da UNHCR, 2,6 milhões de afegãos fugiram do país, número que perde apenas para a Síria (6,8 milhões) e Venezuela (4,1 milhões).

A maior parte dos refugiados atravessou para os países vizinhos, Paquistão e Irã, em um movimento que se repete agora. O Conselho Norueguês de Refugiados afirma que cerca de 300 mil afegãos buscaram abrigo no Irã desde que o Taleban assumiu o poder em agosto. Entre 4 e 5 mil afegãos tentam cruzar a fronteira com o país de maneira informal todos os dias.

"Tradicionalmente, os países vizinhos Paquistão e Irã absorveram a maioria dos refugiados", explica Shailja Sharma, professora de Estudos Internacionais com foco em refugiados e migrações forçadas da DePaul University, nos Estados Unidos. "Mas eles já abrigam de 1,5 a 2 milhões de afegãos e, política e economicamente, isso é muito difícil para eles".

Além disso, acrescenta, os países são politicamente frágeis. "Os EUA deveriam ampliar sua ação, assim como a UE, uma vez que sua presença e retirada causaram grande parte do êxodo", afirma Sharma. "E tanto os EUA quanto a UE podem absorver muito mais pessoas, financeira e socialmente."

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Ainda não se sabe se o Ocidente absorverá muitos afegãos. Os Estados Unidos receberam até agora cerca de 31 mil refugiados, e uma estimativa do The New York Times indicava que mais 50 mil poderiam ser admitidos em outubro. O Home Office do Reino Unido anunciou um esquema de reassentamento -- que incluiria 5 mil cidadãos afegãos em 2021 e até 20 mil a longo prazo. As Nações Unidas pediram que a Europa aceite 42.500 afegãos nos próximos cinco anos, um compromisso com o qual o bloco não se comprometeu.

“Mais do que uma questão de capacidade para absorver refugiados, a questão é de vontade política. O número de afegãos que precisam de proteção dentro e fora do país é alto e é importante lembrar que a maioria deles reside no Afeganistão ou na região. Apenas uma minoria selecionada é reassentada em países ocidentais”, explica Giorgia Dona, professora do Centro de Pesquisa sobre Migração, Refugiados e Pertencimento da Universidade de East London.

Dona afirma que enquanto os países da região estão abertos a receber refugiados de todas as esferas, os países ocidentais parecem reassentar principalmente as elites -- como no caso dos afegãos entrevistados para essa reportagem. “A maioria dos civis evacuados pelas forças dos EUA e seus parceiros de coalizão eram educados, urbanos, principalmente homens que trabalhavam como intérpretes ou funcionários em embaixadas e projetos estrangeiros”, explica.

“Essa abordagem de recepção diferenciada na região e no exterior cria categorias diferentes e hierárquicas de refugiados merecedores e não merecedores”, diz Dona. “É interessante notar que apenas aqueles contratados diretamente por potências estrangeiras foram evacuados, enquanto aqueles que trabalham para subcontratantes estrangeiros ou em projetos financiados por estrangeiros foram deixados para trás. No entanto, eles também estão em perigo.”

Desafios

Kelsey Norman, pesquisadora da Rice University, nos Estados Unidos, e diretora do Programa de Direitos da Mulher, Direitos Humanos e Refugiados do Instituto Baker, explica que sair do país é apenas o primeiro problema dos refugiados. “Os refugiados geralmente não têm muitos recursos com eles, apenas o que conseguiram levar”, afirma. “Nos países do sul global, para onde foi a maioria e onde muita ajuda é fornecida de maneira informal, e não por meio do Estado, eles têm que encontrar trabalho informal, talvez tenham acesso a serviços de saúde, que talvez sejam fornecidos por uma organização internacional ou uma ONG, mas muitas vezes isso é muito limitado”, diz. 

Outro desafio é cuidar dos filhos. “Se têm filhos, precisam descobrir o que fazer com eles, seja colocá-los na escola ou encontrar outras opções para que eles possam continuar a viver suas vidas e ter uma educação”, explica. 

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Os refugiados ainda podem enfrentar discriminação, xenofobia e racismo, diz. “Há também desafios como o de passar pelo processo de aculturação e encontrar um emprego que corresponda aos níveis de educação e experiência anterriores”, explica. “Em suma, todos os desafios inerentes a tentar construir uma nova vida em outro lugar.”

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