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‘Ainda estamos em choque’: ucranianos tentam se recuperar após um mês aprisionados pela Rússia

Mais de 300 ucranianos ficaram presos em um porão de uma escola por quase um mês; dez deles morreram

Por Valerie Hopkins
Atualização:

YAHIDNE (THE NEW YORK TIMES) – Dois meses se passaram desde que os moradores de Yahidne, uma vila do norte da Ucrânia, se libertaram de um porão onde foram feitos reféns pelos militares russos. O local começou a ser reconstruído, mas as memórias daqueles dias permanecem atuais e profundamente dolorosas para o povo.

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Yahidne, localizada na principal estrada ao norte de Kiev, foi invadida no dia 3 de março, uma semana após o início da invasão da Rússia na Ucrânia. Mais de 300 pessoas, das quais 77 eram crianças, foram aprisionadas dentro de um porão úmido da escola da vila por quase um mês, até o dia 31 de março, e feitas de escudo humano pelas tropas russas que ocupavam o local. Dez morreram antes do local ser libertado.

Os promotores ucranianos afirmam que entre entre os reféns estavam um bebê e um idoso de 93 anos. O lugar era considerado um campo de concentração pelos prisioneiros. O porão, além de úmido, não tinha luz e era tão apertado que o calor gerado pelo corpos era suficiente para se aquecer no inverno ucraniano.

Imagem do dia 8 deste mês mostra mural pintado por crianças ucranianas em porão de escola, em Yahidne, Ucrânia. Russos prenderam moradores no local e os fizeram reféns Foto: Nicole Tung / NYT

O aperto tinha outra consequência: a falta de oxigênio suficiente para respirar normalmente. Algumas pessoas desmaiavam e outras, principalmente mais velhas, sofriam alucinações. “Eles começavam a balbuciar sobre a necessidade de plantar batatas e outras coisas que não podiam fazer”, disse o ucraniano Ivan Petrovich, zelador da escola.

Um dos presos, Oleh Turash, de 54 anos, dormia na sala maior da escola. O cômodo tinha um pequeno buraco feito pelas próprias pessoas que servia como única fonte de ar; um balde colocado do lado oposto ao que dormiam servia de banheiro improvisado para crianças e outros que não aguentavam esperar amanhecer. Somente pela manhã havia esperança de que os soldados russos deixariam as pessoas usarem os banheiros comuns.

Um registro na porta da sala maior mostrava que 136 pessoas haviam ficado lá, 9 delas crianças. De início, eram 139, mas esse número foi riscado para representar três mortes. “Três pessoas morreram ao meu redor”, disse a mãe de Oleh Turash, Valentyna, de 73 anos.

Quase três meses depois da libertação, Valentyna tem um pulso inchado devido a uma queda nas escadas que levavam ao porão que quebrou seu braço direito. “Ainda estou com muita dor e não consigo usar meus dedos tão bem quanto costumava”, disse ela.

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Veículo destruído em Yahidne, Ucrânia, durante conflitos das tropas russas e ucranianas, em imagem do dia 8 de junho. Vila tenta se reconstruir sob traumas da guerra Foto: Nicole Tung / NYT

Para tornar a prisão mais suportável para as crianças, Petrovich e Turash levaram giz de cera para elas desenharem. Um mural desenhado, composto por bandeiras ucranianas, corações, sóis e borboletas, permanece no interior do cômodo. “Não a guerra!!!”, escreveu uma criança no topo.

Em outra sala, menor que a de Turash, outra contagem de corpos alteradas: primeiro, 22 pessoas, sendo 5 crianças; depois, 18 pessoas. Um registro com a data dos mortos foi feito na parede. Um dos nomes, Anatoli Shevchenko, é acompanhado por um ponto de interrogação. Ninguém sabe onde ele está.

À medida que alguns dias se passavam, os russos davam permissão para os prisioneiros carregarem os corpos dos mortos para a caldeira da escola. Eles aproveitavam a ida para passar por uma abertura da sala e descer uma escada até uma tubulação de esgoto, onde buscavam a água que era utilizada para o sistema de aquecimento da escola.

Depois, a ferviam sobre o fogo que costumavam cozinhar quando tinham permissão. “Havia cadáveres na mesa”, conta Turash. “E ao lado dos cadáveres, estávamos fervendo a água que bebíamos.”

Após dois meses, ainda estamos em choque. Há muito trabalho para fazer em casa, mas você não consegue levantar a mão. É assustador

Ivan Petrovich, ucraniano feito refém em Yahidne

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A certa altura, os soldados russos recrutaram Turash e outros presos para cavar uma cova de pelo menos 3 metros de profundidade ao lado da sala das caldeiras. A intenção dos russos era instalar um gerador, mas a sensação para o ucraniano era a de que estava cavando a própria cova.

A cada semana, em média, depois de algumas negociações, os soldados concediam a Turash permissão para enterrar um companheiro de prisão em uma vala comum, localizada do lado de fora da escola. O ucraniano ia acompanhado de outros aldeões que conseguiam a autorização. Os militares russos os vigiavam com os fuzis à mostra. Alimentos também eram obtidos sob autorização e vigilância.

Do lado de fora, a escola estava cercada por tanques russos. Os soldados derrubaram árvores da floresta localizada atrás do edifício e cavaram trincheiras para si mesmos, roubando tapetes das casas das pessoas para colocar dentro das escavações. Outros itens também eram roubados. Turash reconheceu as próprias botas nos pés de um soldado.

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Os invasores contaram a alguns moradores que havia planos de levá-los à Rússia. “Eles nos disseram: ‘Os homens irão para Tyumen para trabalhar na produção de madeira e as mulheres serão enviadas para outra parte da Rússia para trabalhar na limpeza de peixes’”, relembra a ucraniana Ekaterina Balanovich.

Local onde prisioneiros dormiam durante ocupação russa em Yahidne. Ucranianos descrevem lugar como apertado e úmido Foto: Nicole Tung / NYT

No dia 30 de março, quando as forças russas começaram a sair do norte, os soldados trancaram a porta da escola com todos os ucranianos dentro e ordenaram que eles não saíssem. Naquela noite, os prisioneiros arrombaram a porta e rapidamente perceberam que os russos haviam partido. Ainda era possível ouvir o barulho da guerra nas proximidades, e a maioria decidiu permanecer no local até chegar o resgate.

Graças a um telefone antigo encontrado na escola, uma das pessoas conseguiu falar com um soldado ucraniano. “Quando eles chegaram, ficamos felizes. Os abraçamos e choramos”, disse ela. “Eles trouxeram pão. Fazia um mês que não víamos uma migalha de pão.”

Mais de dois meses depois, no entanto, Yahidne está longe de voltar ao normal. A escola está muito danificada e talvez não tenha conserto. Tanques destruídos e veículos blindados foram rebocados, mas as marcas da ocupação permanecem em trincheiras, áreas destruídas por incêndios e pertences espalhados pela vila.

Algumas vítimas, como Ivan Petrovich, parecem sofrer de depressão ou algum tipo de estresse pós-traumático. “Após dois meses, ainda estamos em choque. Há muito trabalho para fazer em casa, mas você não consegue levantar a mão. É assustador”, relata o zelador.

“Não há uma única casa aqui onde não havia tanques ou veículos blindados próximos”, disse Valentyna Sezonenko, de 75 anos, que encontrou munições parcialmente não detonadas na estrada em frente à sua casa. Casas vizinhas a sua foram demolidas.

Em uma rua próxima ao salão de eventos destruído da vila, voluntários da capital estavam colocando novos telhados em prédios de apartamentos. Um projétil de uma munição cluster estava nas proximidades.

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Na quarta-feira, a procuradora-chefe da Ucrânia, Irina Venediktova, anunciou a acusação de oito novos casos de crimes de guerra, incluindo um contra nove soldados russos acusados de aterrorizar Yahidne. “Infelizmente, essas pessoas não estão aqui [fisicamente] e estamos indo para um julgamento à revelia, mas é muito importante para nós, para a Justiça ucraniana, que as vítimas e os familiares tenham o processo legal”, afirmou.

Enquanto a Rússia nega que soldados tenham cometido crimes de guerra, a Ucrânia condenou três soldados por esse tipo de crime. A maioria dos soldados acusados por Venediktova é proveniente da República de Tuva, uma província russa no sudeste da Sibéria.

Para os ucranianos, as acusações são uma chance de se redimir a violência sofrida. Uma das ucranianas de Yahidne, Ludmila Shevchenko, conta que deseja perguntar aos comandantes: “Onde está meu filho, Anatoly Shevchenko?”. A pergunta continua sem resposta e paira nas interrogações ao lado do nome escrito em giz de cera no porão.

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