Análise: Dinâmicas que levaram Netanyahu ao poder em Israel desaparecem sob seus pés

Quanto mais Netanyahu tem sucesso em tirar a questão palestina da mesa, mais os eleitores terão tempo para se preocupar com outras questões, como assuntos religiosos do Estado

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Por Shmuel Rosner
Atualização:

O primeiro-ministro israelense pode lutar para ficar no poder. Mas a dinâmica que o manteve por uma década mudou sob seus pés.

Israel está indeciso. E politicamente dividido. Na terça-feira, pela segunda vez este ano, os eleitores fizeram o que eleitores fazem, e a conclusão ainda é, bem, inconclusiva.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu Foto: Ronen Zvulun/Reuters

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Nos próximos dias, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, que é o chefe do partido Likud, e seu principal oponente político, o general Benny Gantz, o chefe do Partido Azul e Branco, tentarão convencer o presidente Reuven Rivlin, que cada um deles tem capacidade maior que a de seu rival de formar uma coalizão estável para governar Israel.

Atualmente, os números não apontam para nenhum deles. O caminho mais óbvio para ambos numa coalizão estável - um governo de unidade - é algo que nenhum dos dois parece querer.

A névoa da batalha, em outras palavras, ainda é densa esta manhã. Mas algumas novas realidades sobre a política israelense podem apesar de tudo, ainda serem perceptíveis. A eleição colocou dois campos um contra o outro, um apoiando o primeiro-ministro e o outro se opondo a ele. Mas a parte interessante foram as táticas usadas pelos dois campos como principal meio de reunir as tropas.

Ambos identificaram versões distorcidas dos adversários (homens e mulheres) contra os quais fazer campanha, apresentando de forma alarmista os dois grupos menos favoráveis na mente dos principais eleitores israelenses: judeus ultra-ortodoxos e árabes muçulmanos. Que essas táticas de duelo tenham levado a um empate não uma, mas duas vezes, nos diz algo sobre o porquê de estarmos testemunhando o fim da era Netanyahu, mesmo que ele consiga encontrar uma maneira de se manter no poder.

Nos velhos tempos da política israelense, quando o primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion, estava no poder, a fronteira do que era mais tradicional na política era marcada por sua famosa frase: “Sem Herut e sem Maki”. – A frase coloca o direitista predecessor do Likud - Herut - e o Partido Comunista - Maki – passando dos limites da aceitação política. Hoje, Herut e Maki não existem mais da mesma forma. E, no entanto, podemos ver ecos desse sentimento na política israelense: existe uma corrente principal e uma periferia que a maioria dos israelenses considera questionáveis.

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Meu novo livro, "#IsraeliJudaism, Portrait of a Revolution Cultural" (Judaismo israelense, retrato de uma revolução cultural, em tradução livre), em co-autoria com o pesquisador Camil Fuchs, contém os dados que melhor explicam como é essa periferia. Peça aos israelenses que classifiquem os grupos que contribuíram para o sucesso do país e, ano após ano, eles dizem a mesma coisa: no final da lista da contribuição percebida para o sucesso de Israel, encontramos israelenses árabes muçulmanos e apenas um ponto acima deles, judeus ultra-ortodoxos ou Haredim.

A partir desses dados, podemos entender as escolhas dos espantalhos dos dois campos. E uma vez que o fazemos, a eleição começa a parecer menos uma disputa entre um campo pró Netanyahu e um campo jamais Netanyahu, e mais como uma disputa entre um campo jamais-árabe e um campo jamais-Haredi - sem ninguém vencendo decisivamente.

Os eleitores israelenses suspeitam há muito tempo de representantes árabes, cuja agenda eles encaram como influenciada pela causa “palestina” e não pelo interesse “israelense”. Para o primeiro-ministro e seus aliados, assustar os israelenses com a ideia de falar dos eleitores e políticos árabes é um hábito antigo.

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Nas eleições de 2015, o infame grito de guerra de Netanyahu de última hora para seus defensores mencionou que os eleitores árabes estavam correndo “em massa” para votar. Em 2019, ele usou a mesma lista de truques, com um ângulo ligeiramente diverso: ele lançou acusações sobre possíveis fraudes de eleitores árabes (para ser justo, há sinais de que esse problema existe até um certo ponto) e realizou uma reunião de “emergência” de consultores para criar estratégias contra um aumento esperado no número de cadeiras conquistadas pela Lista Árabe Conjunta.            

O partido Azul e Branco é vulnerável a campanhas antiárabes porque, como muitos israelenses entendem e as pesquisas confirmam, ele não tem como formar uma coalizão sem o apoio árabe, a menos que forme um governo de unidade com o Likud de Netanyahu. Mas as eleições provaram que o Likud tem seu próprio calcanhar de Aquiles: é vulnerável a uma campanha do tipo: nunca o Haredi (judaísmo ortodoxo). Há muito tempo, o Likud optou por se colar, politicamente falando, aos partidos ultra-ortodoxos. Agora está pagando o preço.

Até o momento, nem Gantz (esq.),nem Netanyahu alcançaria as 61 cadeiras necessárias para governar o país Foto: Emmanuel Dunand and Menahem Kahana / AFP

A aliança com os ultra-ortodoxos não era irracional para o Likud, politicamente falando. Os partidos Haredi são leais, bem administrados, disciplinados. É fácil negociar com eles: dê a eles o que eles querem - como fundos para suas escolas especiais, nas quais os alunos estudam Torá, mas não matemática - e recebam seus votos em troca. Como raramente existe um conflito entre o que o Likud quer e o que os partidos Haredi querem, o vínculo era natural e forte.

Mas os israelenses não gostam dos representantes haredim, que utilizam o poder político para fechar suas lojas no sábado, e exigem apoio aos jovens estudantes haredim que deixam de prestar serviço militar. E, neste ciclo eleitoral, os líderes do Likud tiveram que enfrentar a possibilidade de que sua aliança tenha um custo. Quanto mais inaceitáveis os partidos Haredi se tornam para o eleitorado geral, mais o Likud fica vulnerável a campanhas alegando, com evidências sólidas, que ao votar em Netanyahu, também se está votando pelo domínio ultra-ortodoxo.

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Portanto, Netanyahu descobriu que o outro campo também tem um espantalho (uma versão distorcida), que funciona de maneira semelhante. Qual é mais assustador? Aqui está a ironia: quanto mais Netanyahu tem sucesso em tirar a questão palestina da mesa, mais os eleitores terão tempo para se preocupar com outras questões, como assuntos religiosos do Estado.

O político que identificou essa dinâmica melhor do que todos os outros foi o ex-ministro da Defesa Avigdor Lieberman, chefe do Partido Israel Beitenu. Lieberman forçou o segundo turno das eleições e conduziu uma campanha magistral baseada em uma estratégia simples: ele era o único representante da corrente principal, aproveitando tanto os sentimentos antiárabes e antiultra-ortodoxos.

Lieberman tem uma longa história de convocar os sentimentos antiárabes para suas campanhas. Ele tentou uma vez aprovar uma lei que condicionava a cidadania israelense a um juramento de lealdade; ele queria que o governo de Israel incentivasse os árabes israelenses a se mudarem para um estado palestino, oferecendo-lhes “incentivos econômicos”.

Nesta eleição, ele voltou a mesma tática contra um novo grupo: os Haredim. Lieberman disse que se recusará a se unir a partidos ultra-ortodoxos na mesma coalizão, até que seus termos sejam aceitos: entre eles, igualdade no serviço militar e matemática e inglês nas escolas Haredi.

Com base nessa estratégia, Lieberman quase dobrou o número de assentos que ele terá no próximo Knesset e se transformou em um indiscutível “fazedor de reis” - nenhum bloco poderá formar um governo sem o seu apoio. Mais importante, ele também pode ter reformulado o antigo mapa da política israelense.

Ao denegrir árabes e Haredim durante a campanha, muitas vezes em palavras que deveriam fazer um cidadão decente se encolher, teve como resultado que ambas as comunidades corressem às urnas para fazer suas vozes serem ouvidas. Se dá para se acreditar nas pesquisas de opinião, os israelenses árabes e os judeus haredi emergirão desta eleição com mais representantes no parlamento de Israel do que antes. Ainda assim, suas posições políticas não melhoraram. De fato, o grande desafio social de sua marginalidade só se tornou mais pronunciado.

As novas regras que Lieberman impôs à campanha significam que um eleitor israelense não precisa mais depender de uma coalizão religiosa de direita para rejeitar uma parceria política com os árabes. Eles querem dizer que um eleitor israelense não precisa mais ser membro de um campo de centro-esquerda para se opor aos partidos ultra-ortodoxos. Lieberman não é Ben-Gurion, mas conseguiu recriar “sem Herut e sem Maki” para uma realidade do século XXI.

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O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, recebe presente de crianças judias residentes do Vale do Jordão, na Cisjordânia,após reunião que decidiu pela legalização de assentamento a dois dias da eleição Foto: Amir Cohen/EFE/EPA/Pool

Isso parece um realinhamento do mapa político que envia uma mensagem simples e importante aos líderes de Israel: a maioria quer recuperar seu domínio; a maioria se recusa a permitir que as minorias governem seu futuro.maioria tem uma mensagem para os Haredim e os árabes: a influência só virá com a aceitação de certas normas.

Os resultados políticos desta mensagem podem ser complicados. O sentimento, porém, não é.                              

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