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Análise: Personagens da TV dos EUA se tornam parte da campanha

Tanto o Partido Democrata quanto o Republicano tentaram empregar a estratégia política de usar um dos personagens mais populares da história da televisão, Archie Bunker, para alcançar novos eleitores

Por Oscar Winberg
Atualização:

O inimigo de Jerry Seinfeld na série Seinfeld (NBC, 1989-1998), popular sitcom dos anos 1990, interpretado pelo ator Wayne Knight, reapareceu na sexta-feira passada – a tempo de entrar na eleição presidencial de 2020 – com uma mensagem importante.

Na propaganda de um comitê de ação política associado à organização política ACRONYM, Knight retoma a voz e os maneirismos do carteiro fictício para condenar os tão divulgados ataques republicanos à votação por correio e encorajar as pessoas a votarem na próxima eleição. O retorno de Newman atraiu atenção online com mais de 60 mil curtidas e mais de 20 mil retuítes num único dia só no Twitter.

O carteiro Newmanressurge para condenar os ataques republicanos à votação por correio Foto: TVLINE.COM

No mesmo dia, o ator Milo Ventimiglia exortou seus seguidores a votarem e se valeu de Jack Pearson, seu personagem no drama de sucesso This Is Us (NBC, 2016-), para transmitir sua mensagem. “Se você gosta de JACK / Vote no JOE”, escreveu o ator no Twitter.

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Não é novidade que atores liberais tentem usar seus amados personagens de televisão para angariar ganhos políticos. Na verdade, é uma prática que começou na década de 70. Mas, ao contrário do que diz a sabedoria convencional, tanto o Partido Democrata quanto o Republicano tentaram empregar a estratégia política de usar um dos personagens mais populares da história da televisão, Archie Bunker, para alcançar novos eleitores e aproveitar a conexão emocional que os espectadores tinham com os personagens para transformá-los em eleitores.

Interpretado por Carroll O’Connor, Archie Bunker era a estrela de All in the Family (CBS, 1971-1979) – o programa mais popular da televisão – e foi um ícone do conservadorismo da classe trabalhadora branca que estava inaugurando um realinhamento da política americana no fim dos anos 60 e 70. O produtor Norman Lear queria abordar o conflito político, social e cultural dentro do formato da sitcom.

Ao transformar o entretenimento da televisão – que na década de 60 estava mais focado em cavalos falantes, freiras voadoras e donas de casa enfeitiçadas do que na Guerra do Vietnã, nos direitos civis ou na agitação estudantil – o programa gerou muita polêmica.

Abordando questões como segregação residencial, crimes de ódio contra minorias sexuais e campanhas ambientais, All in the Family apresentava as perspectivas liberais dos produtores e roteiristas. Embora fosse a peça central do show, Bunker, voz da direita, sempre acabava no lado perdedor.

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Com o programa sendo assunto em Hollywood e também em Washington, candidatos de todo o espectro político tentaram usar Bunker para angariar ganhos políticos. Depois das reformas desencadeadas pela tumultuada década de 60, a política estava se afastando das campanhas centradas no partido e se aproximando das campanhas centradas no candidato – introduzindo uma política de showbiz na qual tanto republicanos quanto democratas cortejavam Hollywood.

Quando, em 1971, John Lindsay, então prefeito de Nova York, anunciou que buscaria a indicação presidencial democrata poucos meses depois de deixar o Partido Republicano, ele não tinha uma base eleitoral própria dentro de seu novo partido. A televisão, concluiu a campanha de Lindsay, impulsionaria ou destruiria a campanha já nas primeiras corridas das primárias. Lindsay tinha apelo junto aos liberais, mas precisava expandir sua base para a classe trabalhadora branca e para aqueles seduzidos pelo conservadorismo do segregacionista George Wallace. Pensando nisso, Lindsay recorreu a Archie Bunker.

Archie Bunker, interpretado por Carroll O'Connor, foi usado como arma política nos anos 70 Foto: Reuters

Carroll O’Connor era um legítimo liberal: forte defensor dos direitos civis, oponente da Guerra do Vietnã e orgulhoso guardião dos sindicatos. Mas seu personagem podia ser usado para atrair o apoio mais conservador dos colarinhos-azuis de que Lindsay tanto precisava. Então, ele apoiou Lindsay e fez anúncios de televisão borrando os limites entre ator e personagem.

“Ele não pode endossá-lo como personagem”, explicou um porta-voz da campanha, “mas usa uma linguagem que o deixará reconhecível”. A atenção da mídia veio logo depois. Os rivais não demoraram a entender as estratégias televisivas da campanha. Ainda assim, nem mesmo o amado personagem conseguiu salvar a campanha de Lindsay. As estratégias inovadoras, no entanto, ficariam para sempre.

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Em 1972, depois de vencer a indicação democrata como o favorito dos liberais e estudantes, George McGovern precisava expandir sua base de votos para ter alguma chance contra o presidente Richard Nixon nas eleições gerais. Apesar de seu gerente de campanha Gary Hart ter definido o “voto Archie Bunker” como “o mais importante politicamente”, sua campanha não conseguiu alcançar a classe trabalhadora branca, a tradicional chave para o sucesso democrata.

Cercada por celebridades e estrelas do cinema e do rock, a campanha de McGovern ganhou uma aura de festa hollywoodiana. Então, em vez de investir no alcance junto aos trabalhadores, a campanha procurou pegar um atalho e recorreu a Bunker, mais uma vez interpretado por O’Connor, para alcançar esses eleitores.

“Archie Bunker apoia McGovern”, dizia uma manchete da Associated Press que confundia a celebridade com o personagem. Em endossos na televisão, O’Connor se apresentava como o personagem: “eu, como um homem conservador, vou votar com confiança no senador George McGovern”. Na televisão, o próprio McGovern pedia aos telespectadores que gostavam de Archie Bunker para votarem na chapa democrata. A campanha esperava – em vão – que o personagem compensasse seus limitados esforços para atrair o voto da classe trabalhadora.

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Mas não foram apenas os democratas que tentaram tirar proveito do personagem Bunker. Só que os republicanos realizaram seus esforços de maneira diferente. Por mais surpreendente que possa parecer em 2020, quando a esmagadora maioria das celebridades se inclina para a esquerda, Nixon também contava com um grande interesse e forte apoio em Hollywood. Estrelas de cinema como George Murphy e Ronald Reagan, ambos republicanos, trocaram sua fama pelo sucesso nas urnas. Ciente do poder da política do showbiz, a Casa Branca ficou de olho no entretenimento televisivo.

George Murphy no filme 'Forja de Heróis' (1943), com música e participação de Irving Berlin, uma das vozes do patriotismo americano, embora fosse imigrante Foto: Warner Bros.

O presidente odiava All in the Family por entender que a série ridicularizava sua base política, mas amigos da indústria o convenceram de que a mensagem política pretendida não chegava aos telespectadores. Preocupados com a influência de Bunker, muitos críticos acreditavam que o sucesso do programa dependia dos conservadores que assistiam para torcer por Bunker.

Então Nixon quis capitalizar essa desconexão entre os produtores da série e seu público. Reconhecendo a popularidade de Bunker, a campanha de Nixon tentou persuadir e pressionar O’Connor a endossar o presidente. Embora o personagem do programa tendesse a ficar do lado de Nixon, o liberal O’Connor jamais emprestaria seu nome e imagem para a campanha pela reeleição do presidente.

Rejeitado por O’Connor, Nixon intensificou seus ataques à indústria, caracterizando-a como liberal, elitista e moralmente falida (mesmo enquanto continuava a cortejar outras estrelas de cinema e magnatas para aderirem à sua campanha). E isto ressoou entre os conservadores que também caricaturavam McGovern e seus apoiadores liberais em Hollywood como elites que abraçam a política da extrema esquerda.

“Seu oponente teve o apoio de um ator muito bem pago que retrata o operário como um bufão ignorante”, um apoiador de Nixon no Queens escreveu ao presidente em 1972, “mas quero que o senhor saiba, senhor presidente, que o senhor recebeu o apoio e o voto dos trabalhadores calorosos, bem informados e de verdade desta comunidade”.

As disputas por Archie Bunker prenunciaram a confiança que os liberais depositariam em Hollywood para promover suas mensagens e o ataque que os conservadores fariam a Hollywood como um reduto das elites liberais. Embora suas estratégias sejam diferentes, tanto democratas quanto republicanos continuam convencidos da importância do entretenimento e dão as boas-vindas às celebridades em suas campanhas.

Elevando estrelas de cinema e personagens de televisão a figuras políticas, os esforços de Lindsay, McGovern e Nixon destacam como e por que Hollywood se transformou numa arena política – seja como aliada ou como vilã, dependendo das circunstâncias.

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E, no entanto, os fracassos de Lindsay e McGovern ilustram as limitações da política de showbiz da esquerda junto, enquanto os sucessos eleitorais de Reagan e Donald Trump nos lembram como a direita tem sido eficaz em transformar entretenimento em poder político.

Archie Bunker não ganhou as eleições para Lindsay e McGovern – nem uma possível vitória de Biden em novembro será o resultado de Newman ou Jack Pearson. Mas as disputas em torno do personagem Archie Bunker nos ajudam a entender por que o entretenimento televisivo ocupa uma posição tão importante nas campanhas políticas modernas./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

*WINBERG É DOUTORANDO EM HISTÓRIA NA ABO AKADEMI UNIVERSITY E PESQUISA A HISTÓRIA POLÍTICA DO ENTRETENIMENTO TELEVISIVO NA DÉCADA DE 1970

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