Aniversário de tratado nuclear evoca necessidade de reaproximar Brasil e Argentina

Ao contrário de 30 anos atrás, quando fortaleceu cooperação com a Argentina por meio do Acordo de Guadalajara, Brasil perde espaço no tabuleiro sul-americano

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Por Hussein Kalout
Atualização:

Brasil e Argentina celebraram, no dia 18 de julho, os 30 anos de um dos mais importantes marcos de sua relação bilateral: a criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), que permitiu superar a desconfiança mútua em matéria nuclear. Mais do que apenas celebrar a data, é preciso evocar aquela obra de engenharia diplomática para amainar o presente distanciamento imposto pela lógica política que governa as relações entre as duas maiores nações latino-americanas. 

Ainda que o evento em si não tenha como ser traduzido em uma grande ação de política externa, é importante não perder de vista o significado dessa iniciativa para a diplomacia brasileira que, ao longo das última três décadas, buscou construir uma estratégia específica para lidar com um vizinho que olhava para o seu irmão sul-americano com suspicácia. 

Bolsonaroassiste à participação do presidente argentino Alberto Fernández na cúpula do Mercosul. Foto: Alan Santos/PR

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Ao largo dos diferentes governos nos dois países, Buenos Aires e Brasília investiram três décadas de trabalho para que as arestas fossem aparadas e a relação estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, na segunda metade dos anos 1980, puseram fim às constantes fricções entre Brasil e Argentina. Dessa aproximação nasceu o processo de integração que desembocaria mais tarde no Mercosul. A aproximação bilateral alargou o caminho para a cooperação no campo nuclear - consagrado na assinatura do Acordo de Guadalajara para o uso exclusivamente pacífico da energia nuclear entre Brasil e Argentina, em 18 de julho de 1991.

Em matéria securitária, a criação da ABACC, resultado do Acordo de Guadalajara, pode ser considerada como um dos mais importantes passos de nossa diplomacia no pós-2ª Guerra, no plano regional. Aliás, no marco do regime de não proliferação nuclear, o avanço logrado entre Brasil e Argentina é um feito que representa a antítese do que ocorreu entre Índia e o Paquistão

Todavia, não é mistério que o histórico das relações bilaterais entre brasileiros e argentinos está longe de ser deleitoso "mar de rosas" - até porque não foi e, atualmente, não está sendo. Apesar disso, a diplomacia provou ser o campo pertinente para a superação de divergências. É oportuno sublinhar que nos últimos 30 anos, tanto o Itamaraty quanto o Palácio San Martín buscaram transformar uma relação baseada na competição em uma relação norteada pela cooperação. A intensa rivalidade geopolítica cedeu lugar paulatinamente à construção de uma parceria estratégica.

Os presidentes Raúl Alfonsín, da Argentina, e JoséSarney, do Brasil, durante encontro em Brasília. Foto: Arquivo/ Estadão Conteúdo/ AE (08/04/1988)

Impedir a construção de coalizões antibrasileiras na América do Sul - face ao desproporcional peso do país em relação aos seus vizinhos - permitiu ao Brasil assumir o papel de indutor do processo de desenvolvimento e articulador de iniciativas fundamentais para a pacificação de conflitos como, por exemplo, o acordo de paz entre o Peru e o Equador. Apesar de certos percalços, como o caso da Venezuela, o Brasil, em certa medida, logrou no plano político - dentro do que determina a Constituição Federal - influenciar positivamente os seus vizinhos na região. 

Hoje, infelizmente, o Brasil está na encruzilhada. A importância geopolítica de um país em seu compasso estratégico requer permanente atenção e constante atualização dos paradigmas de sua atuação em matéria de política exterior. Na América do Sul, é preciso superar o vácuo de poder gerado pela inércia do governo Bolsonaro. O caminho escolhido pelo líder brasileiro e por seu primeiro chanceler, definitivamente, não foi o da temperança e tampouco o da sabedoria política. O confronto, o distanciamento e as escolhas de corte ideológico, puseram o Brasil em queda livre e sem capacidade de exercer, em sua plenitude, o seu capital diplomático. Tornaram o país um gigante de pés de barro na sua própria região: isolado, irrelevante e incapaz de influenciar os processos decisórios em um sentido construtivo e consentâneo com o interesse nacional.

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Infelizmente, o governo brasileiro perdeu uma colossal oportunidade de reorganizar o tabuleiro sul-americano. China, EUA e até a Rússia operam, atualmente, no vácuo político deixado (por incompetente opção) pelo governo Bolsonaro. 

Carlos França, o atual incumbente da chancelaria, procura fazer de um limão uma "limonada". A iniciativa de organizar uma cerimônia específica para celebrar os 30 anos do Acordo de Guadalajara na presença do Chanceler da Argentina, Felipe Solá, no Rio de Janeiro, é ação que merece ser reconhecida - apesar do gesto não passar de um movimento tático e de ativismo diplomático circunstancial. A relação entre o Palácio do Planalto e a Casa Rosada somente será pacificada após encontro, olho no olho, entre os dois mandatários. Somente os dois presidentes podem revigorar a cooperação institucional entre os dois países. Recolocar no trilho a relação bilateral demanda do Brasil iniciativas concretas e uma leitura geopolítica que transcenda preferências ideológicas. 

* É cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.