Argentinos céticos com novo governo

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Por Agencia Estado
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Um dia depois da memorável jornada de manifestações que culminaram com a queda do governo De La Rua, a tranqüilidade voltou a Buenos Aires. Mas os argentinos olhavam para o futuro imediato com um profundo ceticismo quanto à capacidade dos políticos de solucionar os graves problemas vividos pelo país. Havia também um receio generalizado sobre o que acontecerá com suas economias depois da desvalorização do peso, que é comentada nas ruas como um fato inevitável, depois de dez anos de uma paridade cada vez mais insustentável com o dólar. Anos seguidos de recessão e desemprego fizeram os argentinos comemorar a saída de Cavallo e De La Rua. No entanto, nos cafés, nos táxis, e nas esquinas de Buenos Aires parece que nunca se falou tão mal dos políticos como agora. "Sai de La Rua mas voltam os peronistas, que começaram com tudo isso", dizia Inácio Llanos, que ganha a vida vendendo lembranças para turistas na Plaza de Mayo, onde fica a Casa Rosada, sede do governo argentino. Quando o assunto é economia, a preocupação dominante é a desvalorização. "É um fantasma que assombra todos os argentinos", afirmava Gustavo Cordoba, consultor em telecomunicações. "São poucos os argentinos que não tem hoje dívidas ou depósitos em dólares", explicava. Buenos Aires amanheceu hoje ainda com os sinais da confusão vivida na véspera. Havia nervosismo na fisionomia das pessoas e, temendo novos distúrbios, muitos comerciantes não abriram as portas das lojas. No centro da cidade, nos locais onde houve choques entre os manifestantes e a polícia, ainda havia pelo chão cacos de vidraças quebradas e podia se sentir o cheiro da fumaça dos carros queimados. Além de supermercados, que sofreram saques, bancos e repartições do governo foram os alvos principais da fúria dos manifestantes. No cruzamento das avenidas 9 de Julho e Corrientes, em frente ao tradicional obelisco que aparece em muitos dos cartões postais da cidade, uma lanchonete MacDonalds foi incendiada. Pouco mais adiante, na Avenida Corrientes, um grupo se aglomerava diante do local onde funcionava uma loja de roupas masculinas, a Cervantes, que foi totalmente destruída pelo fogo. "Chegamos a fechar as portas, mas não adiantou nada", contava Franco Ruiz, um dos ajudantes da loja. O advogado Omar Garcia, amigo dos proprietários, diz que as depredações que ocorreram em vários pontos da cidade foram organizadas por pessoas que se aproveitaram dos protestos. "Eu vi quando chegou um grupo de motoqueiros, no meio da confusão. A um sinal de um deles, começaram a quebrar tudo e a saquear", contou. No meio da aglomeração, um senhor de terno, com ar sério espera para ser entrevistado por uma equipe de televisão. É Osvaldo Cornide, presidente da Coordenação de Atividades Mercantis e Empresariais, que representa pequenos comerciantes da cidade. "Vamos encaminhar ao governo um pedido de indenização, porque as companhias de seguros não cobrem os prejuízos causados por tumultos de rua", explica. "Como vamos fazer para pagar nossos impostos e as dívidas com os bancos?" Os conflitos e os saques aterrorizaram os comerciantes nos últimos dias. Maurício Hirsch, que tem uma relojoaria na Plaza de Mayo, conta que, na quinta-feira, seus empregados ficaram presos na loja enquanto, lá fora, a polícia montada investia contra os manifestantes, que revidavam com paus e pedras. Aterrorizados, ouviam o impacto das balas de borracha nas portas de metal. "Tudo isso aconteceu porque a população estava muito insatisfeita, e não havia mais governo", afirma. Pablo Feller, ex-funcionário de uma agência de viagens, hoje aposentado, comenta que, evidentemente, os pequenos comerciantes não tem culpa pelo que aconteceu. Mas afirma que os distúrbios só ocorreram porque, durante anos, as políticas econômicas do governo, apoiadas por uma parte expressiva dos empresários, provocaram recessão e desemprego. Ele lembra que, há três meses, um decreto do ex-ministro Cavallo instituiu uma taxa de 13% sobre as aposentadorias. "Cavallo dizia que era para pagar a dívida externa. Só que com esse dinheiro eu pagava as contas de gás, luz e telefone", revolta-se. Aos poucos, porém, a cidade vai voltando à sua vida normal. Na Plaza de Mayo, onde nos últimos dois dias ocorreram alguns dos distúrbios mais violentos, as pessoas já voltavam a passear e a aproveitar o horário do almoço para descansar na grama. Lembrando, contudo, que a situação ainda não está totalmente normalizada, uma grande de ferro colocada pela polícia dividia a praça em duas, impedindo as pessoas de se aproximar da Casa Rosada. Llanos lamenta que os turistas, sua principal clientela, ainda são muito poucos. O casal de espanhóis José e Isabel é uma das exceções. Não compram nada, porém. Contam que chegaram a Buenos Aires na quinta-feira, pouco antes dos conflitos explodirem, mas nada viram do hotel onde se hospedaram, no sofisticado bairro da Recoletta. Estavam há três dias em Bariloche, e dizem não ter sentido medo de vir a Buenos Aires. "Ouvimos dizer que havia estado de sítio. Mas também havia manifestações. Por isso, não pensamos que a coisa fosse tão séria", diz Isabel. Hoje, já não havia mais manifestações na cidade. Uma exceção foi uma passeata organizada á tarde por um grupo de partidos de esquerda para pedir participação dos trabalhadores no novo governo que está se formando no país. Apesar do estado de sítio, que ainda está em vigor, os manifestantes se juntaram ao lado prédio do Congresso Nacional. Ao estilo argentino, com muito barulho, bandeiras e toques de tambor, seguiram pela Avenida Collon. Escoltados pela polícia.

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