Aumenta tensão entre nacionalismos e imigração na Europa

Aliada à crise econômica, série de ataques em Paris impulsiona discurso de intolerância e pedidos de controle de fronteiras

PUBLICIDADE

Por Steven Erlanger e Katrin Bennhold
Atualização:
Protestos contra os ataques em Paris Foto: Burhan Ozbilici/AP Photo

O ataque sofisticado perpetrado com precisão militar contra o jornal francês Charlie Hebdo, conhecido por satirizar o Islã, primeiro ato de uma série de atentados que levou terror à França na semana passada, abalou um continente onde já fervem sentimentos contrários à imigração alimentando partidos nacionalistas de extrema direita, como a Frente Nacional (FN) de Marine Le Pen. 

PUBLICIDADE

“É um momento de grande perigo para as sociedades europeias”, disse Peter Neumann, diretor do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização no King’s College de Londres. “Com o aumento da radicalização entre os patrocinadores das organizações jihadistas e a classe trabalhadora branca se sentindo cada vez mais marginalizada e distante das elites, a situação está ficando crítica.”

Olivier Roy, estudioso francês do Islã e do radicalismo, definiu o ataque – a mais sangrenta ação terrorista em solo francês desde o fim da Guerra da Argélia no início dos anos 60 – como “um momento decisivo quantitativo e qualitativo”, ao destacar o alvo e o número de vítimas. “Foi um ataque de impacto máximo. Fizeram para chocar a sociedade, e neste sentido tiveram pleno êxito.”

Recentemente, as atitudes contra os imigrantes cresceram na Europa, impulsionadas em parte por uma economia moribunda e o elevado desemprego, bem como pelo aumento da imigração e de fronteiras mais porosas. O ressentimento popular foi providencial para grupos como o Partido pela Independência do Reino Unido (Ukip) e a FN, liderada por Marine na França, e também de grupos menos conhecidos como Patrióticos Europeus Contra a Islamização do Ocidente, que dois dias antes do atentado ao jornal reuniu 18 mil membros em Dresden, na Alemanha. Na Suécia, onde recentemente houve três ataques a mesquitas, o Partido Democrata Sueco, contrário à imigração e aos islamistas, recebeu o apoio de 15% da população em recentes pesquisas. 

Em seu esforço estridente, vulgar e às vezes de cunho comercial, de ofender a fé islâmica, incluindo a figura do profeta Maomé, o Charlie Hebdo virou símbolo de um agressivo secularismo francês que via seu principal inimigo na ascensão do Islã conservador na França. De fato, calcula-se que o país registre a maior população muçulmana da Europa. 

“Esse ateísmo secular é um ato de guerra nesse contexto”, afirmou Andrew Hussey, professor de Estudos Pós-coloniais em Paris. Ele é o autor de The French Intifada, que descreve as complexas relações entre a França e seus muçulmanos, ainda marcados pelo colonialismo e pela guerra da Argélia. “Do ponto de vista político, a esquerda oficial francesa nega o conflito entre a França e o mundo árabe”, afirmou o professor Hussey. “Mas os franceses em geral o sentem profundamente.”

Medo. Os ataques levaram alguns muçulmanos a temer um movimento de retaliação. “Quando pensam em terrorismo, algumas pessoas pensam nos muçulmanos”, diz Arnaud N’Goma, de 26 anos, que trabalha num banco. Samir Elatrassi, 27 anos, concordou, acrescentando que “a islamofobia aumentará muito mais”. “Quando alguns veem esse tipo de terrorista, eles os identificam com outros muçulmanos”, disse. “Quem se beneficiará com isto será a extrema direita.”

Publicidade

Na Grã-Bretanha, onde já existe uma numerosa população muçulmana, o Ukip exige a saída do país da União Europeia e rigorosos controles da imigração, enfatizando o que considera uma ameaça aos valores e à identidade britânica. 

“Um grande número de europeus é disfarçadamente antimuçulmano e a mobilização crescente dessas forças agora atinge o centro da sociedade” disse Neumann. “Se virmos mais incidentes como esses – e acho que veremos –, observaremos uma nova polarização dessas sociedades europeias nos próximos anos.” Os que mais sofrerão com essa reação serão os muçulmanos comuns que tentam viver sua vida na Europa. 

Em nenhum lugar da Europa as tensões são tão fortes quanto na França, com seis milhões de muçulmanos, uma história colonial na Argélia, na Síria e no Norte da África, e uma política externa militarmente audaciosa. Essa história é agravada por um período de fragilidade econômica e governamental, quando a França parece incapaz de fazer reformas de caráter econômico, social e estrutural. 

Livros. O sentimento de fracasso e paralisia é generalizado no país. O ataque contra o Charlie Hebdo ocorreu no dia da publicação de um polêmico romance de Michel Houllebecq, Submission (Submissão), que descreve a vitória do Islã na França e a gradativa colaboração da sociedade com os novos dirigentes. Houellebecq, como os conhecidos cartunistas e editores do Charlie Hebdo que foram assassinados, é símbolo da liberdade e licença artística francesas, e a sua editora, Flammarion, estaria preocupada com a possibilidade de ele e a própria editora se tornarem alvo dos terroristas. Mas a atmosfera ficou mais pesada com a ascensão da Frente Nacional e sua líder, Marine, que está à frente do Partido Socialista nas pesquisas, e cujo tema de campanha é a ameaça que o Islã representa para os valores e a soberania francesa. 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Muita atenção foi dada recentemente a um outro livro de sucesso de um crítico social conservador, Éric Zemmour, chamado O Suicídio Francês, em que ele ataca a esquerda e o Estado pela sua impotência na defesa da Franca contra a americanização, a globalização, a imigração e, naturalmente, o Islã.

“A ação terrorista vem a calhar para a Frente Nacional”, disse Camille Grand, diretora da Fundação Francesa de Pesquisa Estratégica. “Le Pen diz que em todos os lugares o Islã é uma grande ameaça. Diz que a França não deve apoiar os ataques no Iraque, mas sim defender a pátria e não criar ameaças atuando no exterior, de modo que eles podem naturalmente se beneficiar disso.”

Alvo interno. Depois de uma série de três ataques aparentemente cometidos por “lobos solitários” contra multidões perto do Natal, na França, e outros em Ottawa, no Canadá, e em Sydney, na Austrália, surgiram rumores de que a última ação poderia ser também uma resposta ao apelo feito em setembro por um porta-voz do Estado Islâmico, Abu Muhamad al-Adnani, para que seus partidários atacassem alvos dentro de países que estão combatendo o Estado Islâmico.

Publicidade

Camille observou que pelo menos 2 mil jovens franceses viajaram para combater ao lado dos militantes do EI no Iraque e na Síria. “Como controlamos nossa população muçulmana?” ela indagou. “Esse tipo de ataque é muito difícil de detectar ou impedir”, disse, acrescentando que o Estado não deve reagir desproporcionalmente, pois é isso que os radicais querem.

Por isso, será importante saber se os agressores estiveram na Síria ou “desejavam ir para lá e, em vez disso, cometeram o ataque” – a inteligência francesa confirma que os irmãos Said e Chérif Kouachi treinaram com a Al-Qaeda no Iêmen.

François Heisbourg, analista do setor da defesa e assessor especial da Fundação para Pesquisa Estratégica, em Paris, diz que o caráter militar profissional do ataque ao jornal lembrou-o dos comandos que invadiram Mumbai, na Índia, em julho de 2011. “Foi o mais próximo de uma operação militar que já observamos na França”, afirmou. “Não são garotos da mercearia da esquina dos subúrbios", disse sobre os irmãos Kouachi.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.