Aumento do número de militares mortos faz russos questionarem custos da guerra na Ucrânia

Seis semanas depois do presidente Vladimir Putin iniciar sua invasão ao país vizinho, muitos russos continuam no escuro a respeito da magnitude das perdas de seu país

PUBLICIDADE

Por Anton Troianovski, Ivan Nechepurenko e Valeriya Safronova
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Ivan Kononov, tenente-sênior dos fuzileiros navais da Rússia, adorava cozinhar. Ele fazia comida italiana para sua unidade em campo, afirmou seu irmão, e trocava mantimentos por temperos quando servia na Síria.

Alexander Kononov, de 32 anos, viu seu irmão pela última vez no necrotério de um hospital da cidade russa de Rostov-on-Don, em março. Ele havia morrido no combate por uma siderúrgica na cidade de Mariupol. Tinha 34 anos. Quando caminhava para o necrotério, recordou-se Alexander Kononov, ele passou em frente a um armazém com o portão aberto e viu dezenas de sacos pretos com cadáveres alinhados no chão.

Somente após a morte do irmão, afirmou Kononov em entrevista pelo telefone, ele começou a dar atenção para a guerra que ocorre a pouco mais de 80 quilômetros de sua casa. Então ele percebeu, segundo contou, que seu irmão tinha morrido numa guerra que “não é boa para ninguém”.

O corpo de um soldado russo morto perto de Kharkiv, em 25 de fevereiro Foto: Tyler Hicks

“Se todas as pessoas souberem de tudo o que está acontecendo, haverá protestos”, afirmou Kononov, que trabalha numa empresa de frete, referindo-se à consciência dos russos em geral. “E acho que isso seria bom, porque esta guerra tem de acabar. Não deveria haver nenhuma guerra.”

Continua após a publicidade

Seis semanas depois do presidente Vladimir Putin iniciar sua invasão à Ucrânia, muitos russos continuam no escuro a respeito da magnitude das perdas de seu país — e sobre a carnificina e as atrocidades que os militares russos estão infligindo à medida que recuam no norte.

Mas cada vez mais a realidade da guerra está se intrometendo nas vidas das famílias comuns, à medida que chegam cada vez mais notificações de mortes e sacos de corpos, fazendo com que cada vez mais russos, da mesma maneira que Kononov, questionem a guerra.

Para outras pessoas, porém, as assombrosas notícias das mortes apenas firmam sua determinação de derrotar a Ucrânia e apoiar o conflito de Putin contra o Ocidente.

“Se os Estados Unidos não fornecessem armas para os ucranianos nazistas, nossos rapazes parariam de morrer”, afirmou Alexander Chernikh, que perdeu o filho de 22 anos, Luka Chernikh, que era oficial de inteligência militar, numa entrevista pelo telefone. “Minha opinião pessoal é que deveríamos explodir os EUA com uma bomba nuclear e pronto, para que eles parem de se meter nos assuntos de outros países.”

Sacrifício russo

Se a crescente dor pessoal sobre a guerra enfraquecer a determinação do povo em apoiar o Kremlin, isso poderia influenciar o futuro do conflito. Insistindo que a invasão não passa de uma “operação militar especial” e que nenhum conscrito foi enviado para combate, o governo ainda tenta evitar a impressão de que a maior guerra terrestre na Europa desde 1945 exigirá sacrifícios pessoais dos russos comuns.

Uma pesquisa recente do instituto independente Levada constatou que 35% dos russos prestam pouca ou nenhuma atenção aos eventos na Ucrânia, e mortes de soldados russos raramente são mencionadas na TV estatal.

Continua após a publicidade

A última vez que a Rússia anunciou as baixas da guerra foi em 25 de março, divulgando uma contagem de 1.351 mortes. Autoridades americanas afirmaram no mês passado que uma estimativa conservadora coloca o número de mortes de russos em mais de 7 mil. O serviço em língua russa da BBC afirmou na quarta-feira que contou 1.083 mortes anunciadas por autoridades locais e meios de comunicação da Rússia. Mas 20% dessas mortes eram de oficiais — um índice desproporcional, indicando que um número enorme de mortes de militares de patentes baixas pode estar sendo subnotificado.

O silêncio oficial a respeito das mortes remete à guerra soviética no Afeganistão. A respeito desse conflito, a autora belarussa Svetlana Alexievich escreveu posteriormente: “Houve apenas rumores sobre notificações de mortes chegando a vilarejos rurais e sobre caixões de zinco entregues em prédios de apartamentos pré-fabricados”.

Desta vez, fragmentos de notícias sobre mortes chegam ao público russo por meio de anúncios de autoridades locais, universidades e postagens de mulheres e mães dos mortos em redes sociais. E quando chega, a notícia ruim vem com frequência envolta na terminologia oficial da guerra.

O governador de Riazan, no oeste da Rússia, afirmou recentemente que quatro homens da região morreram “em luta contra o regime nacionalista criminoso”. Em Ulianovsk, cidade às margens do Rio Volga, a mulher do tenente-sênior Vladislav Lukonin, da 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada postou que seu marido tinha morrido protegendo o “céu pacífico da Rússia”.

Quando a Faculdade Pedagógica Industrial da cidade de Klintsi, no oeste russo, informou a morte de um graduando recente, Alexei Prigoda, que tinha 23 anos, em seu perfil de rede social, esta semana, a instituição afirmou que ele “morreu participando da ‘Operação Especial no Território da Ucrânia’, cumprindo sua missão com a pátria”.

No dia seguinte, a faculdade anunciou que organizaria neste fim de semana um festival musical chamado “Pela paz! Pela Rússia! Pelo presidente!”, apresentando dez bandas de rock locais.

Continua após a publicidade

Nova sociedade civil

Nos anos 80, a arrastada guerra no Afeganistão acabou magnificando o desencanto do público a respeito do governo soviético. Um Comitê de Mães de Soldados formado no fim da guerra para proteger rapazes de abusos dos militares ajudou a forjar uma nova sociedade civil que perfurou o silêncio do Estado.

Mas a Guerra do Afeganistão durou uma década. A socióloga russa Anastasia Nikolskaia, afirmou que não encontrou nenhuma evidência de que as mortes em batalha estejam fazendo os russos se voltarem contra a guerra na Ucrânia.

Ao contrário do que ocorreu durante a guerra no Afeganistão, afirmou ela, o público russo está recebendo uma explicação clara sobre os motivos de seu país estar lutando: por sua segurança em face à agressão do Ocidente e contra o nazismo (para justificar a guerra, Putin descreve falaciosamente um governo ucraniano controlado por nazistas).

Em sua maioria, afirmou ela, os russos estão tentando evitar notícias de mortes de civis. “Estamos tentando nos distanciar dessas informações”, afirmou ela. “É difícil demais ouvir e conhecer essas notícias. Não podemos evitar isso.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.