O militante do grupo radical kirchnerista La Cámpora está determinado a evitar que o governista Daniel Scioli, de quem não gosta, perca o segundo turno da eleição presidencial para o conservador Mauricio Macri. Na campanha de casa em casa feita em bastiões perdidos na primeira votação, a devoção pela presidente é esquecida quando quem abre a porta é contra Cristina Kirchner. “Vote em Scioli, ele não pensa como ela.”
A frase do militante Lucas Cano, de 22 anos, é mal recebida pela bancária aposentada María Isabel Genes, de 60 anos. “Alguém pode não ser kirchnerista. Mas se jantar com um, não me diga que não estão juntos”, responde a mulher, inclinada a votar em Macri. O estudante de administração faz a última e desesperada tentativa de reverter o voto. “Scioli não pensa como Cristina, a prova disso é que a Cámpora não o apoia.”
A traição por conveniência às ideias da presidente e do grupo que defende, por um voto para o moderado Scioli, mostra que o pragmatismo venceu a ideologia na campanha kirchnerista na Província de Buenos Aires, onde está 37% do eleitorado do país.
Ambos conversam pelas grades da casa de classe média em que María Isabel vive no bairro Ciudadela, em Tres de Febrero, a uma hora da capital argentina. O município é a síntese do revés kirchnerista sofrido há duas semanas. Seus 340 mil moradores eram governados havia 24 anos pelo mesmo prefeito e 28 anos por algum governador peronista – nos últimos 8 anos, por Scioli. Em 10 de dezembro, província e município serão dos conservadores.
Se não recuperar votos na Província de Buenos Aires, o peronismo – do qual o kirchnerismo é uma corrente – será derrotado também na eleição nacional. Por isso, a sede da Cámpora em Tres de Febrero tem um mapa com alguns bairros destacados com marca-texto amarelo. São lugares de classe média em que Sergio Massa (21,3%) e outros opositores tiveram melhor desempenho. Neles, estão os votos mais fáceis de reverter. Por morar em um deles, María Isabel tem a campainha tocada.
“A senhora poderia responder a uma pesquisa rápida?” é a primeira questão de Cano, invariavelmente. Ela aceita. Responde que sabe do segundo turno no dia 22. Que conhece os candidatos. Só depois de rebater a terceira questão, sobre a imagem de Macri e Scioli e em quem votaria, percebe que a “pesquisa” é uma tentativa de mudar seu voto. Vem a conversa que termina com o “ele não pensa como ela” e a entrega de um santinho de Scioli, mantido até então com discrição por Cano.
“Se notamos que o morador é muito macrista ou sciolista, não perdemos tempo. No caso dela, tínhamos esperança”, explica o estudante. Ele e o colega Lautero Traverso, de 23 anos, percorreram a essa altura metade das casas das três quadras designadas no mapa impresso numa folha de papel ofício.
No trajeto, vale parar quem passeia com cachorros ao sol do meio-dia, caso de Cármen Méndez, tipo de eleitora que reanima a dupla. Ela é uma indecisa. Cármen diz que sua prioridade é segurança e ouve dos militantes que o governista pretende colocar polícias locais em todas províncias e fortalecer a presença do Exército nas fronteiras – concessão feita ao programa de Massa, para buscar o peronista desiludido com o kirchnerismo.
“Eles podem influenciar meu voto. Acho que só me decidirei no dia e vai ser muito apertado. Os dois candidatos têm qualidades e um entorno obscuro”, avalia a mulher, que guarda o santinho e segue o passeio com a cadela Lolita.
Traverso tem certeza de que Macri e sua proposta de ajuste econômico levarão o país a uma crise similar à de 2001. “Para minha família, até seria positivo. Se o país vai mal, é bom ter uma agência lotérica. Foi quando compraram uma casa”, afirma, enquanto acende um cigarro. No maço, não se vê a imagem da doença ligada ao tabagismo, obrigatória como no Brasil. No lugar, encaixa-se uma base de papel com a inscrição “Clarín Mente”. O maior grupo de comunicação argentino é considerado por Cristina um inimigo.
Traverso apaga o cigarro antes de chegar à porta seguinte. Diante de um eleitor desempregado, com a calça suja de tinta, argumenta: “O senhor ouviu que Macri considera salários como custos e vai baixá-los? Viu que ele vai aumentar a idade de aposentadoria?” A resposta do homem, que faz bicos como pintor, é evasiva.
“Como é difícil ‘vender’ Scioli, só descolando ele de Cristina”, desabafa Cano, que por um voto costuma usar outro argumento pouco governista: “Scioli é um meio termo entre Cristina e Macri”. Traverso afirma que, ao chegar em casa, segue fazendo campanha semelhante por telefone. “Dedico todo meu tempo a isso.”
A energia que os amigos depositam na campanha envolve interesses coletivos, mas também individuais. Ambos deixaram de ir às aulas de administração quando a eleição foi para segundo turno. “Sabemos que vamos ficar sem universidade. Não vamos ter orçamento, dinheiro para viajar”, prevê Cano. Ele ganha 8 mil pesos (R$ 3,2 mil) por mês em dois empregos públicos de indicação política, um municipal e um federal.
O primeiro perderá quando terminar o contrato. O segundo depende de uma vitória de Scioli. Para seguir percorrendo a área até o dia 22, conta com colegas para faltar a ambos. “Num deles, não precisam da minha presença física, sou coordenador. No outro, amigos se revezam cobrindo meus turnos.”
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