O mandato de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos chega ao fim na segunda-feira, 20, de uma maneira melancólica. Com a popularidade em baixa após desistir de disputar a reeleição e uma insatisfação da população com a maneira com que ele lidou com os preços altos provocados pelo pós-pandemia e com o apoio às guerras da Ucrânia e de Gaza, o democrata deixa a Casa Branca mais lembrado pelos erros que pelos acertos.
Com isso, o republicano Donald Trump herdará uma América dividida, com a economia aquecida, mas com o poder de compra da população ainda afetado pela alta inflação dos últimos anos. No front externo, as guerras em Gaza e na Ucrânia ainda representam um desafio.
Transição nos EUA
Biden deixa a Casa Branca aprovado por apenas 37% dos americanos. Quando chegou ao poder, esse número era de 53,4%, segundo a média de pesquisas do site FiveThirtyEight. Por trás desses números, estão insatisfações com a economia e com o apoio incondicional às duas maiores guerras da atualidade, segundo analistas consultados pelo Estadão.
“O Biden começa o mandato dele com uma agenda doméstica bastante ambiciosa, quase tentando repetir o governo Roosevelt, mas essa ambição toda foi prejudicada pela questão da inflação. O aumento do custo de vida marcou o governo Biden e foi responsável pela derrota democrata.”, avalia o cientista político Carlos Gustavo Poggio, professor do Berea College, nos Estados Unidos.

Um admirador de Roosevelt
A história política americana desde a 2ª Guerra é marcada por três momentos: O Estado de bem-estar social criado por Franklin D. Roosevelt, no qual o Partido Democrata dominou a política americana por mais de 30 anos, a revolução conservadora de Richard Nixon e Ronald Reagan, que levaram o liberalismo econômico de volta ao topo da agenda do país, nos anos 70 e 80, e a globalização dos anos Clinton e Bush, quando a Guerra Fria tinha acabado e a América era a única superpotência mundial.
Com a crise de 2008, a tribalização das sociedades conectadas nas redes sociais e a pandemia de covid-19, uma sucessão de eventos em cascata agravou a polarização política que fermentava nos EUA desde o segundo mandato de Bill Clinton. Os republicanos foram mais para a direita, e os democratas, mais para a esquerda.
“Para julgar o legado do Biden é preciso entender sua concepção de mundo: ele é de uma época de uma visão ‘Plano Marshall’, dos anos dourados dos Estados Unidos, com os aliados crescendo junto. Ele tentou impor isso ao governo dele, e é o último elo dessa visão de integração do mundo democrático à ideia americana”, diz Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais da ESPM.
“No cenário doméstico, o Biden fala para uma classe média na qual ele viveu e viu crescer. Essa classe média está diminuindo. Nos anos 90, ela compunha 80% da população, e hoje é de 50%. Ele ainda vê uma possibilidade de o sonho americano crescer dentro de uma lógica distributivista”, acrescenta Trevisan, em uma referência ao modelo de bem-estar social adotado por Roosevelt a Lyndon Johnson.

Promessas rompidas
Em 2020, o ano em que o coronavírus paralisou o mundo, Donald Trump era o presidente dos Estados Unidos. Seu populismo digital, o uso frequente de mentiras e a resposta ineficaz à pandemia fizeram com que os democratas escolhessem um candidato que representasse a normalidade para desafiá-lo.
Biden disputou a presidência prometendo ser um líder de transição, que tiraria o país da sensação de crises constantes que marcaram o mandato republicano. Muitos americanos brincavam à época que seu maior ativo eleitoral era “não ser Donald Trump”.
“No momento em que ele decide concorrer à reeleição e quebrar a promessa de ser um presidente de transição, isso acabou sendo desastroso, com a desistência dele por conta da idade e do debate ruim que fez com o Trump”, avalia Poggio.
Seu primeiro desafio foi controlar a pandemia. Com a vacina criada já no fim do mandato do antecessor, coube a Biden liderar o esforço para que ela chegasse aos braços dos americanos. Deu certo: 250 milhões de pessoas foram vacinadas e a doença, que chegou a matar mais de 3 mil pessoas por dia no ápice da crise, foi controlada.
O segundo passo foi recuperar a economia da recessão provocada pela pandemia. Biden conseguiu no começo do mandato, quando ainda tinha maioria nas duas Casas do Congresso, aprovar um pacote de estímulo de US$ 1,9 trilhão.
Graças à injeção de recursos, a economia se recuperou do tombo de 2020, quando se contraiu 2,2%, e cresceu 5,8% em 2021, 1,9% em 2022 e 2,3% em 2023. A taxa de desemprego caiu de 8% em 2020 para 5,3% em 2021 e depois se estabilizou em torno de 3,6% nos dois anos seguintes.
Como parte do plano para recuperar a economia, Biden também investiu numa agenda legislativa para reconstruir a infraestrutura produtiva americana, sobretudo pontes, estradas, aeroportos e portos. O pacote de US$ 1 trilhão foi aprovado pelo Congresso em 2021. A maioria das obras desse projeto são de execução lenta e devem ser entregues apenas nos próximos anos.
Ele também conseguiu aprovar uma lei para reduzir o custo de remédios para aposentados, sobretudo a insulina, que nos EUA era cobrada a preços muito altos. Hoje, ela está limitada a US$ 35.
“O Biden teve um papel importante na gestão da pandemia, sobretudo no primeiro ano de mandato. Retomar a ciência na gestão de políticas públicas foi fundamental”, lembra Lucas de Souza Martins, historiador da Temple University, nos EUA. “Ele também recuperou os EUA nos fóruns internacionais, com a volta ao acordo de Paris e participação ativa no G-20.”
Inflação, o calcanhar de Aquiles
Na economia, no entanto, o calcanhar de Aquiles de Biden foi a inflação. Os pacotes de estímulo, aliados aos gargalos de produção que afetaram o mundo todo no pós-pandemia, fizeram os EUA ter a pior inflação desde os anos 70, justamente quando os democratas foram enxotados do poder por Reagan. Em 2021, os preços subiram 4,7%, e em 2022, 8%.
Os preços pararam de subir na segunda metade do mandato, mas seguiram num patamar elevado. Como a renda do trabalhador não cresceu o suficiente para gerar uma sensação de que o poder de compra melhorou, os democratas foram punidos nas urnas.
Mas só a alta dos preços não explica os erros de Biden. Na política externa, o democrata colecionou equívocos. O primeiro deles foi a conturbada retirada do Afeganistão. Negociada ainda no governo Trump, os EUA se comprometeram a deixar o país em 2021.
Mas a execução foi caótica. O Taleban invadiu a capital, Cabul, e assumiu o controle do país. Treze soldados americanos morreram em um atentado suicida no aeroporto da cidade, e as imagens de afegãos desesperados perseguindo aviões americanos que rolavam pela pista para decolar deixaram os Estados Unidos envergonhados.

Guerras impopulares
O desastre de Cabul foi um prenúncio de que tempos mais duros estariam por vir. Meses depois da retirada, o líder russo, Vladimir Putin, começou a ameaçar a Ucrânia e reunir tropas na fronteira. Uma guerra no coração da Europa parecia impensável àquela altura, mas foi exatamente isso que aconteceu.
Em fevereiro de 2022, Kiev foi atacada.
Em muitos sentidos, Joe Biden é tudo que Trump não é: um político profissional, habituado a Washington, nascido em uma família de classe média americana, religioso e, principalmente, um defensor do papel desempenhado pelos EUA na política internacional nas últimas oito décadas.
Uma vez na Casa Branca, coube a ele tentar reconstruir esse papel, que tinha sido parcialmente danificado por Trump em seu primeiro mandato, sobretudo a aliança entre Washington e os países europeus.
“Na política externa, o Biden tenta reconstruir o papel dos EUA na ordem internacional e isso explica o apoio que ele deu à Ucrânia. Para ele, defender a Ucrânia é defender o sistema internacional e defender a ordem mundial patrocinada pelos EUA desde 1945″, explica Poggio.
O apoio de Biden à guerra, tanto financeiro quanto militar, fortaleceu a Otan, que tinha sido questionada por Trump. Suécia e Finlândia se juntaram ao bloco, que viu o investimento em armas aumentar sensivelmente após a invasão.
Internamente, no entanto, o apoio foi visto com ceticismo, principalmente por coincidir com o momento em que o custo de vida nos Estados Unidos estava aumentando.
A fama de belicista de Biden piorou em 7 de outubro de 2023, quando o Hamas realizou o pior atentado da história de Israel. O apoio incondicional à invasão de Gaza que se seguiu ao ataque provocou inúmeros protestos nos EUA, sobretudo de jovens ligados à esquerda democrata, críticos da guerra.

No último ano de mandato, Biden tentou, em vão, convencer Binyamin Netanyahu a aceitar um cessar-fogo, ou até mesmo permitir a entrada de volumes significativos de ajuda humanitária no território palestino.
A frustrada tentativa à reeleição, marcada pela desistência da candidatura após ter a sua agilidade mental questionada num debate com Donald Trump, marcou o início do período de “pato manco” de Biden — que é como os americanos chamam os presidentes em fim de mandato.
Nas últimas semanas, ele perdeu ainda mais apoio por perdoar preventivamente o filho Hunter de qualquer crime, temendo perseguições por parte do sucessor.