Biden poderia tornar o mundo mais seguro, mas teme demais a política; leia análise

Na política externa, governo do presidente americano tem recuado com frequência frente à oposição

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Por Peter Beinart*
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6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - O presidente americano, Joe Biden, tem a chance de evitar uma crise nuclear que poderia levar os Estados Unidos à iminência da guerra e destruir a coalizão que ele construiu para enfrentar a Rússia, mas não está aproveitando a oportunidade por uma razão primordial: ele teme o contragolpe político.

Desde que assumiu a presidência, Biden prometeu recolocar os EUA no pacto nuclear com o Irã que Barack Obama firmou e Donald Trump jogou fora. Isso é vital, já que Teerã, livre das restrições do acordo, tem se apressado em se aprimorar e produzir uma bomba atômica. Agora, de acordo com várias reportagens, os EUA e o Irã concordaram em grande medida a respeito da maneira de ressuscitar o acordo.

Mas um enorme obstáculo permanece: a designação por parte do governo Trump do Exército de Guardiões da Revolução Islâmica — a corporação militar do Irã encarregada de defender o sistema político teocrático do país — como uma organização terrorista estrangeira. Teerã quer que a designação seja abolida.

'Morte à América' é um dos slogans da Guarda Revolucionária do Irã; na imagem, um protesto contra os EUA em 2020 Foto: Rahat Dar/EFE

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse à Comissão de Relações Exteriores do Senado no fim de abril que os EUA não fariam isso, pelo mesmo não sem condições não especificadas que Teerã não parece inclinado a atender. Ele também alertou os senadores de que fracassar em alcançar um acordo que contenha o progresso nuclear do Irã teria consequências graves; a República Islâmica, estimou ele, está “a poucas semanas” de adquirir capacidade de construir uma arma atômica.

Dado isso tudo, outra coisa que Blinken disse é ainda mais chocante. Ele afirmou que a designação de terrorista não importa. “Na prática”, explicou ele, “a designação não gera muito ganho, porque há uma miríade de outras sanções” contra o grupo. Por admitir isso, o governo Biden está arriscando o acordo nuclear iraniano a troco de nada.

Oponentes afirmam que fazer concessões ao Irã, mesmo em relação a temas sobretudo simbólicos, incentivará o país a se tornar ainda mais agressivo. Mas a principal preocupação do governo Biden é a política. Aparentar indulgência em relação a uma força que mira as tropas americanas — mesmo que essa aparência remeta pouco à realidade — não tem apelo eleitoral, especialmente diante de uma campanha para eleições de meio de mandato nas quais as perspectivas dos democratas já não parecem boas.

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O Congresso não está facilitando as coisas: em 4 de maio, 62 senadores — incluindo 16 democratas — aprovaram uma moção não vinculante se opondo à remoção da Guarda Revolucionária da lista de organizações terroristas estrangeiras. “Politicamente”, afirmou recentemente uma autoridade do governo Biden ao Washington Post, “sabemos que este é um passo extremamente difícil”.

Essa timidez tornou-se padrão no governo Biden que, a respeito de política externa, tem recuado com frequência das políticas em que acredita em face à oposição política.

Durante a campanha de 2020, Biden prometeu na plataforma democrata “manobrar rapidamente para reverter” as sanções com que o governo Trump levou à miséria cubanos comuns, ao não fazer nada para melhorar seus direitos humanos.

Em vez disso, Biden endureceu as sanções, uma reversão de rumo que, conforme o Times noticiou no ano passado, “reflete a ascendente influência do senador Robert Menendez, que, enquanto presidente da Comissão de Relações Exteriores, exerce enorme poder sobre indicados e outras prioridades do governo”.

Míssil de longo alcance iraniano 'Kheibar Shekan'; Teerã estaria a 'semanas' de conseguir desenvolver uma arma nuclear, acredita governo americano Foto: Sepah News via AP

Biden também prometeu durante a campanha reabrir o Consulado Americano em Jerusalém Oriental, o que sinalizou para os palestinos locais — a maioria dos quais vivendo sem cidadania sob o controle israelense — que os EUA se preocupavam com sua condição. Mas os republicanos do Congresso, ecoando o governo israelense, se queixaram contra os planos de reabertura do consulado, que continua fechado.

Os democratas também afirmaram em sua plataforma que poriam fim às “contraproducentes e unilaterais guerras de tarifas” do governo Trump contra a China. Mas com políticos de ambos os partidos lutando para provar como são durões em relação a Pequim, esse passo também encontraria uma resistência feroz. A maioria das tarifas de Trump permanece.

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Nenhum presidente é capaz de colocar em prática completamente a plataforma de seu partido, evidentemente. Mas Biden não chega nem a repelir políticas impostas pelo ex-presidente que ele derrotou nas urnas nem a restaurar políticas do ex-presidente do qual ele foi vice. E no caso do Irã, essa falta de disposição é tão absurda quanto perigosa.

Absurda porque não havia nenhuma boa razão para designar o Exército de Guardiões da Revolução Islâmica como organização terrorista, em primeiro lugar. Até Trump fazer isso, em 2019, essa designação nunca havia sido aplicada a uma corporação militar estrangeira. A guarda já estava sob múltiplas sanções. E apoiadores da manobra de Trump reconheceram francamente que a designação destinava-se a tornar doloroso politicamente para qualquer presidente no futuro ressuscitar o acordo nuclear que o governo Trump assassinou.

Pouca utilidade

Até alguns comentaristas que agora se opõem a suspender a designação — por acharem que fazer isso desagradaria aliados dos americanos como Israel e Arábia Saudita — admitem que ela não serve de nenhuma maneira para restringir a Guarda Revolucionária. Conforme admitiu em março Matthew Levitt, do belicoso Washington Institute for Near East Policy, a designação “tem pouca utilidade prática para ajudar o governo nos EUA a lidar com o grupo”.

A consequência mais tangível da designação da Guarda Revolucionária como organização terrorista estrangeira é que ex-integrantes da força são impedidos de entrar nos EUA. Mas é improvável que muitos generais iranianos — já enfrentando uma série de outras sanções — estejam planejando passar férias no país. Quem sofre realmente com isso são as centenas de milhares de recrutas iranianos convocados ao longo de décadas para integrar a Guarda Revolucionária, muitos dos quais simpatizam pouco com o regime que foram forçados a servir.

Em março, a Pacific Symphony convidou um renomado cantor iraniano, Alireza Ghorbani, que atualmente vive no Canadá, para se apresentar em um concerto no sul da Califórnia. Mas ele foi impedido de entrar nos EUA por ter sido convocado para se alistar na Guarda Revolucionária décadas atrás.

Como se isso não fosse ruim o suficiente, fracassar em tirar a Guarda Revolucionária da lista de organizações terroristas estrangeiras poderia, na pior das hipóteses, levar à guerra. Ali Vaez, especialista em Irã do International Crisis Group, prevê que, se o acordo nuclear não for ressuscitado e o Irã continuar a enriquecer urânio no ritmo atual, até o próximo outono (Hemisfério Norte) o país estará prestes a alcançar a capacidade para construir uma bomba atômica.

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Quanto mais Teerã se aproximar disso, mais pressão Biden enfrentará para lançar um ataque militar — ou pelo menos aquiescer se Israel o fizer. “Até o fim do ano”, disse-me Vaez, “teremos uma bomba de Biden ou uma guerra de Biden”.

Uma crise com o Irã minaria a coalizão global que Biden ajudou a reunir para defender a Ucrânia. E constituiria um desastre não apenas em política externa, mas também um desastre político. Se Biden acha que o panorama da campanha para as eleições intercalares parece sombrio neste momento, imagine qual seria o destino dos democratas se o Irã se tornar uma potência nuclear de fato ou se essa possibilidade mergulhar os EUA em mais uma guerra no Oriente Médio. Ao evitar uma dor de cabeça agora, Biden está flertando com uma dor de cabeça muito maior no futuro.

A respeito do Irã, o governo Biden quer arriscar o mínimo. Mas isso é impossível. Melhor seria fazer o que é direito. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL


* É professor de jornalismo e ciência política da Newmark School of Journalism, da City University, em Nova York, editor contribuinte da revista Jewish Currents e autor da newsletter semanal The Beinart Notebook.