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China usa tecnologia financiada pelo Pentágono para desenvolver mísseis hipersônicos

O ‘Washington Post’ mapeou mais de 300 vendas ocorridas desde 2019 de tecnologias originadas nos EUA para dezenas de entidades envolvidas em programas chineses

Por Cate Cadell e Ellen Nakashima

THE WASHINGTON POST - Grupos de pesquisa militar responsáveis pelos programas mais avançados de mísseis hipersônicos da China — muitos na lista de vetados das exportações dos Estados Unidos — estão comprando uma série de tecnologias americanas, incluindo produtos desenvolvidos por empresas que receberam milhões de dólares em auxílios e contratos do Pentágono, segundo constatou uma investigação do jornal The Washington Post.

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Os softwares de última geração são adquiridos por essas organizações militares por meio de empresas privadas chinesas que as revendem, apesar dos controles de exportação americanos projetados para evitar vendas e revendas para entidades estrangeiras consideradas ameaças para a segurança nacional dos EUA, mostram as investigações.

Cientistas que trabalham na ampla rede de academias chinesas de pesquisa militar e em empresas que as auxiliam afirmaram em entrevistas que as tecnologias americanas — como um software especializado em engenharia aeronáutica — suprem lapsos críticos em tecnologias domésticas, cruciais para avanços dos armamentos chineses.

Mísseis produzidos pela China Aerospace Science and Industry Corp. exibidos durante a 13ª Exposição Internacional de Aviação e Aeroespacial da China em Zhuhai, sul da China  Foto: Aly Song/Reuters - 28/09/2022

“Nesse caso, a tecnologia americana é superior — não somos capazes de certas coisas sem tecnologia estrangeira”, afirmou um cientista chinês que trabalha em um laboratório universitário que conduz testes para veículos hipersônicos. “Não existe o mesmo fundamento técnico.”

Algumas das empresas americanas cujos produtos estão chegando aos grupos chineses de pesquisa militar foram beneficiárias de auxílios do Departamento de Defesa para estimular inovações de última geração, de acordo com a base de dados de um programa federal, o que cria o espectro do Pentágono subsidiando avanços militares da China.

“É muito perturbador, porque a realidade é que tecnologias que podem ser usadas para projetos militares hipersônicos foram financiadas pelos contribuintes americanos, por meio do governo americano, e acabaram na China”, afirmou Iain Boyd, diretor do Centro para Iniciativas de Segurança Nacional, da Universidade do Colorado, em Boulder, que realiza pesquisa experimental no campo hipersônico.

O Washington Post mapeou mais de 300 vendas ocorridas desde 2019 de tecnologias originadas nos EUA para dezenas de entidades envolvidas em programas chineses hipersônicos ou de mísseis, analisando solicitações de contratos e documentos de concessão emitidos por esses grupos e também conversando com seis cientistas chineses que trabalham em laboratórios militares e universitários, que descreveram um acesso quase ilimitado a tecnologias americanas aplicáveis a projetos e testes de mísseis. Os cientistas conversaram com o Post sob condição de anonimato para discutir pesquisas sensíveis.

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A torrente constante de tecnologias de última geração fluindo para um campo crítico da pesquisa, no qual os militares chineses ameaçam ultrapassar os EUA, sublinha o desafio de Washington para tentar impedir que os militares chineses explorem inovações americanas.

O setor hipersônico se refere a uma ampla gama de tecnologias recentes capazes de propelir mísseis a velocidades mais de cinco vezes maiores que a do som, potencialmente capazes de evitar as atuais defesas antiaéreas. Autoridades do Pentágono afirmam que EUA e China estão empreendendo uma corrida armamentista para desenvolver as armas hipersônicas mais potentes.

Para construir um míssil hipersônico, os cientistas precisam resolver avançados problemas de física relativos ao voo do míssil. Testes em túneis de vento e lançamentos, como o que a China realizou em 2021, são caros. Usar softwares comerciais americanos, resultado de anos — às vezes décadas — de pesquisa e desenvolvimento, minimiza o tempo e os recursos necessários para esses testes, disseram ao Post os cientistas chineses. Os produtos americanos também têm aplicações em aviação civil, assim como outros campos em que China e EUA competem, incluindo projetos de motores de aeronaves.

A tecnologia sendo comprada inclui várias formas de softwares de engenharia com ajuda computacional, como softwares de aeroelasticidade, que podem ser usados para simular e analisar as condições físicas extremas experimentadas pelos veículos aéreos. Os softwares permitem aos cientistas testar projetos virtualmente, sem depender apenas dos caros testes em túneis de vento e dos lançamentos. Outras vendas incluem hardwares como interferômetros, que podem ser usados por cientistas para capturar dados altamente precisos durante testes em túneis de vento.

Projétil é lançado de um local não especificado na China durante exercícios de fogo real de longo alcance pelo Exército de Libertação Popular Foto: Lai Qiaoquan/Xinhua via AP - 04/08/2022

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Cientistas americanos afirmaram que simulações computacionais são um passo crítico antes de avançar para testes em túneis de vento e lançamentos de armas como mísseis hipersônicos.

“Se a ideia for projetar (um míssil hipersônico) com essas ferramentas de software”, afirmou um pesquisador americano, que falou sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, “simula-se o voo em um computador, analisando o resultado com essas ferramentas”. “E quando conseguimos que o modelo realize a missão exigida, posso testá-lo em um túnel de vento.”

Os controles de exportações dos EUA banem vendas de qualquer produto americano para a China — e sua revenda dentro da China — se existe algum conhecimento de que ele será usado para o desenvolvimento de um míssil ou for destinado para alguma entidade restrita. Mas algumas dessas tecnologias, que também têm aplicação em aviação civil, estão chegando a grupos militares chineses e entidades restritas por meio de empresas chinesas intermediadoras — algumas das quais divulgam publicamente suas relações com armamentos e grupos militares em seus websites, segundo constatou o Post.

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Exportadores são responsáveis, sob as diretrizes do Departamento de Comércio, por determinar se o distribuidor vende para alguma entidade restrita ou destina o produto para uso proibido. “O que sempre dizemos para as empresas é: vocês não podem tapar os próprios olhos”, afirmou em entrevista Matthew Borman, subsecretário-assistente para administração de exportações do departamento. “Você não pode dizer simplesmente, ‘Estou vendendo para um distribuidor, mas não sei o que ele está fazendo com isso’. Especialmente se for uma entidade perceptivelmente fornecedora dos militares chineses.”

“A principal responsabilidade é da empresa”, acrescentou Borman. “E se a empresa não exerce essa responsabilidade, corre o risco de cometer uma violação.”

Revendas

Usando bancos de dados de contratos de compra do governo chinês e outros documentos contratuais, o Post identificou quase 50 empresas americanas cujos produtos foram revendidos por intermediários desde 2019 para grupos militares chineses que trabalham com tecnologia de mísseis. Softwares de simulação de aerodinâmica de duas empresas — Zona Technology, do Arizona, e Metacomp Technologies, com sede na Califórnia — foram fornecidos por revendedores para a Academia Chinesa de Aerodinâmica Aeroespacial (ACAA), mostram solicitações de contratos e documentos de compra e venda. A ACAA foi essencial para o projeto do teste de míssil chinês de 2021, de acordo com dois cientistas militares chineses familiarizados com o programa.

O Post não conseguiu determinar se o software foi usado no processo de projeto do míssil para aquele teste. Mas seus possíveis usos incluem simulação de condições previamente a testes reais, como o de 2021, afirmaram cientistas americanos e chineses.

O teste, que lançou um veículo hipersônico que circundou a Terra, chocou autoridades militares e de inteligência dos EUA — e levou o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior conjunto, a qualificar a situação como “muito próxima” de “um momento Sputnik”.

Nos anos recentes, a China fez rápidos avanços em tecnologia de mísseis como parte de um impulso nacional mais amplo para construir “forças militares de excelência internacional” em linha com potências militares mais desenvolvidas, como os EUA, até 2049, o centenário da fundação da República Popular da China.

Visitantes posam para fotos perto de exibições de veículos militares carregando míssil balístico intercontinental DF-41 e míssil hipersônico DF-17 em uma exposição em Pequim  Foto: Florence Lo/Reuters - 12/10/2022

Apesar de a ACAA não integrar a Lista de Entidades, a “provisão dos mísseis” deverá impedir que softwares americanos sejam mandados para ela se o exportador ou um dos revendedores tiver conhecimento de que o software for destinado para o desenvolvimento de mísseis, afirmaram especialistas.

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“Os controles de exportação dos EUA exigem uma licença para a exportação de qualquer tipo de software, hardware ou outras tecnologias para a China se houver conhecimento de que os produtos serão usados para desenvolver um míssil ou outro item usado em armamento de destruição em massa”, afirmou Kevin Wolf, ex-autoridade graduada da Agência para Indústria e Segurança do Departamento de Comércio, atualmente sócio da Akin Gump e consultor para controles de exportação. “E essa licença geralmente seria negada.”

O diretor-executivo da Zona Technology, P.C. Chen, disse não ter conhecimento de alguma venda de seu software de simulação de aeroelasticidade — um tipo de software de aerodinâmica — diretamente para a ACAA. Ele afirmou que sua empresa vendeu no passado software para a Hifar Technologies, empresa de tecnologia com base em Pequim que, segundo um documento de compra e venda, o revendeu para a ACAA. O distribuidor da Zona Technology na China, Jon Ding, que dirige a 2D Technology, com base na Geórgia, afirmou que licenciou software para a Hifar em 2019.

A Hifar não esconde que vende software e serviços de consultoria para grupos fabricantes de mísseis chineses. A empresa lista mais de 50 grupos militares e fornecedores como “parceiros de cooperação” em seu website, incluindo a ACAA, o Instituto Chinês de Pesquisa de Mísseis Ar-Ar, a Academia Chinesa de Tecnologia de Veículo de Lançamento e o grupo de mísseis do Exército de Libertação Popular, o Centro Chinês de Pesquisa e Desenvolvimento em Aerodinâmica.

Questionado a respeito de ter ou não se certificado sobre algum cliente para que a Hifar vendeu software da Zona Technology ser uma entidade militar, Ding disse, “Não chequei, porque me prometeram (que não eram) e eu confio nelas, portanto eu não faço esse tipo de acompanhamento”. Ele disse que alertou a Hifar para não vender a grupos restritos.

A Hifar não respondeu a repetidos pedidos de comentário. O Post não conseguiu localizar representantes da ACAA nem de outros grupos militares chineses citados nesta reportagem.

Lista de banidas

David Habib, conselheiro jurídico da Metacomp, afirmou que a empresa “não tem nenhum conhecimento a respeito dessas empresas terem ou não adquirido software Metacomp, ou sobre como teriam adquirido, ou se transferiram para outras partes”, referindo-se à ACAA e outros grupos militares que, mostram documentos contratuais do governo, receberam a tecnologia, assim como dois intermediários chineses que, segundo notificações contratuais, venderam o software. Ele afirmou que a empresa é “escrupulosa em atender às leis de controle de exportação dos EUA e exige que seus clientes também o façam”.

O Departamento de Comércio, citando regulações de confidencialidade comercial, não deu informações a respeito de nenhuma empresa específica, nem se as entidades empresariais citadas na reportagem buscaram licenças para exportar, se as conseguiram ou se são investigadas por alguma violação.

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Tanto a Zona Technology quanto a Metacomp Technologies têm contratos para pesquisa e desenvolvimento com a Força Aérea dos EUA, de acordo com documentos federais. Empresas prestadoras de serviços para o Departamento de Defesa são obrigadas a atender controles de exportação aplicáveis e sanções, sob o risco de perder o contrato com o governo ou até entrar na lista de empresas banidas.

Ambas as empresas receberam auxílios do programa Inovação em Pesquisa em Pequenos Negócios (SBIR), do Pentágono, que oferece ajuda em dinheiro para o desenvolvimento de tecnologias que o departamento espera algum dia ajudar as capacidades de defesa dos EUA. A maioria das tecnologias financiadas pelo SBIR é de “uso duplo”, possui aplicações tanto civis quanto militares.

A maioria dos contratos do SBIR vigora por períodos de três meses a um ano, cobrindo custos de pesquisa e a fase de desenvolvimento, expirando normalmente antes das tecnologias chegarem ao mercado, de acordo com oficiais da Força Aérea, que administra o maior programa SBIR do governo americano. A Zona Technology e a Metacomp Technologies receberam do programa US$ 31,6 milhões e US$ 13,9 milhões, respectivamente, de acordo com registros dos auxílios.

Em entrevista pelo telefone, Chen, o CEO da Zona Technology, disse que fundou a empresa em 1988. Em meados dos anos 90, afirmou ele, com a ajuda dos auxílios do SBIR, sua empresa começou a desenvolver os softwares de aeroelasticidade Zaero e Zonair, vendidos no mercado atualmente, que foram vendidos para a ACAA pela fornecedora militar Hifar. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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