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China vê vacinação no país estagnar por causa do uso da vacina como arma diplomática

País mais populoso do mundo se comprometeu a entregar meio bilhão de doses para outros países, especialmente nações em desenvolvimento

Por Eva Dou
Atualização:

SEUL - A China foi o primeiro país atingido pelo coronavírus, entre os primeiros a se recuperar e o mais rápido a começar a lançar vacinas. Mas seu foco na exportação de doses de vacinas - em parte por causa de sua eficácia como moeda de troca diplomática - pode impedir o país de alcançar imunidade coletiva neste ano. 

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A abordagem da China contrasta com a dos Estados Unidos e outras nações ocidentais que desejam alcançar os níveis de vacinação de 70%, chamados de “imunidade de rebanho”. Os EUA planejam chegar a isso durante o verão no Hemisfério Norte, com o presidente Biden anunciando esta semana a compra de mais 200 milhões de doses, num total de 600 milhões.

A União Europeia também pretende obter imunidade coletiva antes do outono. Após os atrasos no fornecimento da AstraZeneca, a UE ameaçou controlar exportação se a empresa não priorizar as entregas para o bloco. Até quarta-feira, cerca de 23 milhões de pessoas na China receberam as doses, de acordo com a Comissão Nacional de Saúde.

China despachou milhões de doses para países em desenvolvimento Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI

De acordo com as previsões oficiais, a China produzirá doses suficientes até o final do ano para cobrir 70% de seus 1,4 bilhão de habitantes. Mas atingir esse limite neste ano exigiria manter quase todas as suas projeções de 2 bilhões de doses em casa. Em vez disso, a China despachou milhões de doses para países em desenvolvimento e prometeu centenas de milhões mais.

O presidente da Associação da Indústria de Vacinas da China, Feng Duojia, disse à agência estatal Xinhua neste mês que esperava que a produção total de vacinas da China ultrapassasse 1,8 bilhões de doses até o final deste ano. Com duas doses por pessoa, isso cobriria quase 1 bilhão de pessoas.

Mas a China se comprometeu a entregar meio bilhão de doses para outros países, de acordo com a mídia estatal, com milhões de doses enviadas nas últimas semanas para a Turquia, Chile, Sérvia e outros lugares. Não está claro qual proporção das doses prometidas por Pequim chegará este ano, com alguns acordos, como o do Chile para 60 milhões de doses da vacina de Sinovac, abrangendo vários anos.

Zhang Yuntao, um executivo sênior da Sinopharm, um dos dois maiores fabricantes de vacinas da China, disse à mídia estatal neste mês que provavelmente levaria “um ou dois anos” para vacinar 500 milhões de pessoas no país. Isso seria 36%.

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As autoridades de Pequim se recusaram a dizer quando a China alcançará a imunidade coletiva e que proporção de suas doses de vacina será vendida no exterior.

“Ao mesmo tempo em que atende à demanda doméstica, a China irá, dentro do escopo de nossas potências, desenvolver cooperação internacional em vacinas de diferentes maneiras com outros países, especialmente nações em desenvolvimento”, disse o Ministério das Relações Exteriores da China em um comunicado ao The Washington Post.

A Comissão Nacional de Saúde da China e o Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças não responderam aos pedidos de comentários. O fato de a China estar ficando para trás na vacinação doméstica é contra-intuitivo, dada a sua vantagem sobre o Ocidente. Centenas de milhares de chineses haviam recebido vacinas até setembro, enquanto a implantação não começou nos Estados Unidos e no Reino Unido até dezembro.

Desde então, a China ficou atrás dos Estados Unidos, Reino Unido e grande parte da Europa em termos de vacinação por 100 pessoas por causa de sua enorme população e seus embarques para o exterior. Sua meta de vacinar 50 milhões de trabalhadores essenciais até meados de fevereiro cobriria menos de 4% de sua população. A essa altura, o Reino Unido pretende receber pelo menos uma primeira dose para 15 milhões de pessoas - ou cerca de 22% de sua população.

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“Todo mundo está tentando subir na lista de vacinas da China”, disse um diplomata de Pequim de um dos países que buscam vacinas chinesas, falando sob condição de anonimato porque não estava autorizado a comentar. “Há uma longa lista de espera.”

Na segunda-feira, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro - há muito um crítico severo das vacinas contra o coronavírus da China - agradeceu publicamente à China por agilizar a entrega que deve chegar em alguns dias. O embarque de ingredientes ativos pode produzir 8,5 milhões de doses, após 6 milhões de doses enviadas anteriormente ao Brasil, segundo a mídia estatal chinesa.

O Peru anunciou um acordo para comprar 38 milhões de doses da Sinopharm, com as autoridades do país dizendo que esperam uma entrega rápida nos próximos meses. 

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Diplomacia da vacina

A “diplomacia da vacina” de Pequim levantou preocupações de rivais. Mas a China afirma que está fazendo agindo de forma humanitária ao não acumular doses de vacina como as nações mais ricas. “É a coisa certa a fazer”, disse Victor Gao, um ex-funcionário do Ministério das Relações Exteriores da China, sobre a estratégia de Pequim. “O lema é não deixar ninguém para trás.”

Grande parte do mundo em desenvolvimento ficará aquém da imunidade de rebanho em 2021, com a Organização Mundial da Saúde visando 20% de cobertura este ano em seu programa Covax para países de baixa renda.

A Índia - a única outra nação com mais de 1 bilhão de habitantes - fez doações de milhões de doses para fortalecer os laços diplomáticos, mesmo com sua própria campanha de vacinação ainda em estágios iniciais.

Pedestres caminham em Wuhan, onde ocorreu o primeiro surto de covid-19 Foto: Hector RETAMAL / AFP

Enquanto isso, na China, as autoridades estão fechando as portas para evitar novos surtos. Dezenas de milhões de pessoas estão sob novo confinamento, testes mais invasivos foram introduzidos e o período de quarentena para viajantes foi estendido de 14 para 21 dias.

O próximo mês será o Ano Novo Lunar, o maior feriado da China. Mais de 3 bilhões de viagens são feitas em um ano normal, já que as pessoas aproveitam a rara oportunidade de visitar a família em todo o país. Mas menos de 1 em 25 chineses serão vacinados até lá, e as autoridades estão pedindo aos residentes que passem o feriado, como no ano passado, em casa. 

Ao contrário dos Estados Unidos e do Rein Unido, a China não lançou doses para os idosos na primeira onda. Feng, o presidente da associação da indústria de vacinas, disse à mídia estatal neste mês que as vacinações serão disponibilizadas para pessoas com mais de 60 e menos de 18 anos após a conclusão dos testes da fase 3 para esses grupos. “Não deve demorar muito”, disse ele, sem dar um prazo.

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A primeira onda de vacinação da China cobre uma variedade de trabalhadores essenciais, incluindo médicos, entregadores e preparadores de alimentos, bem como funcionários do governo e aqueles cujos trabalhos ou estudos exigem viagens internacionais.

Tem havido pouca resistência pública na China sobre o atraso na distribuição ao público em geral ou a venda de vacinas para outros países. Então, novamente, Pequim controlou estritamente a narrativa, com alguns críticos presos depois de atacar a resposta do governo à pandemia.

O desafio da China é agravado ainda pela menor eficácia de suas vacinas. As vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna têm taxas de eficácia de cerca de 95%, enquanto a do Sinopharm é de 79% e a do Sinovac mal ultrapassou os 50% em seu maior ensaio clínico no Brasil. Isso significa que uma proporção maior da população precisará ser vacinada para obter imunidade coletiva.

Ih-Jen Su, ex-diretor-geral dos Centros de Controle de Doenças de Taiwan, disse que é difícil avaliar de fora quantas doses de vacina a China realmente possui. “Para a China, o que sabemos é limitado, principalmente porque eles não lidaram com isso de forma aberta e transparente”, disse ele. “O quanto eles podem realmente produzir no final não está claro.” 

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