Com guerra na Ucrânia, Europa revê gasto em Defesa e papel da Alemanha

Alemães reverteram política que vinha desde a 2ª Guerra e vão enviar armas para ajudar a Ucrânia no combate à Rússia

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Por Marcelo Godoy
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“Você acorda de manhã e percebe: Há guerra na Europa.” Assim o general Alfons Mais, comandante do Exército alemão, começou seu texto, horas após a invasão da Ucrânia. Diante do fato consumado, ele lamentou por escrito que as opções que podia oferecer à liderança política do País eram extremamente limitadas.

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O desabafo de Mais é o mais forte indício de que o conflito fará a Europa rediscutir a estratégia de Defesa, aumentando os gastos militares, além de rever o papel da Alemanha na segurança comum. No sábado, 27, o país anunciou o envio à Ucrânia de mil armas antitanque e 500 mísseis antiaéreos de seu arsenal.

O general publicou o texto na rede LinkedIn. “Vimos o que estava acontecendo e fomos incapazes de resolver isso com nossos argumentos e tirar conclusões em razão da anexação da Crimeia. Isso não é bom. Estou irritado!” Ele recebeu o apoio da ex-ministra da Defesa Annegret Kramp-Karrenbauer. “Estou com tanta raiva de nós mesmos por nosso fracasso histórico. Após a Geórgia, a Crimeia e o Donbass, não preparamos nada que pudesse realmente dissuadir (Vladimir) Putin.” 

O chefe do Estado Maior do Exército alemão, o tenente-general Alfons Mais. Foto: Katharina Roggmann / Academia de Comando e Estado-Maior da Bundeswehr

O general não é uma exceção na Europa. Antes do conflito, outros militares pressionavam seus governos diante da fragilidade do bloco frente a Putin. O general Thierry Burkhard, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas francesas, deu em 2021 um cavalo de pau na estratégia de defesa do país. A contrainsurgência cedeu espaço à aposta na volta de conflitos de alta intensidade ou “hipóteses de engajamento maior”.

A ideia de Burkhard era de que o país devia se preparar para “vencer a guerra antes da guerra”. Para tanto, sua estratégia seguia três noções: “competição, contestação e enfrentamento”. O mundo não era mais o do pós Guerra Fria, onde não havia mais guerras clássicas, como dizia o general inglês Rupert Smith, no livro A Utilidade da Força.

“Em 2008, quando fiz a Escola de Estado-Maior (do Exército, a Eceme), li o Smith. A primeira frase dele é: ‘Já não existem mais guerras’, como se não tivéssemos mais enfrentamentos entre estados nacionais, só contra a Al-Qaeda. Com isso, o investimento em Defesa caiu. O Exército alemão tem carros de combate sucateados, pois você não precisa deles para enfrentar terroristas”, contou o coronel do Exército Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, especialista em geopolítica. “O dinheiro da Defesa foi para outras áreas."

Para Kai Michael Kenkel, professor do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio (IRI/PUC-Rio), a Europa ocidental desaprendeu a fazer guerras. “Muitos alemães genuinamente não acreditam mais que a força militar seja a forma de resolver contenciosos, sobretudo o atual governo. Eles não gastam dinheiro necessário, nem mantém as tropas em situação de prontidão. Em dado momento, 70% dos helicópteros da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) não funcionavam.” A guerra parecia coisa do passado. 

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Ãgora, além dos russos, outro fantasma tira o sono dos europeus: a disposição dos EUA de se engajar no continente. “Os americanos reorientaram a sua política externa para a Ásia”, disse o professor Carlos Frederico Coelho, da Eceme e da PUC-Rio. A retirada dos EUA do continente começou após a queda do muro de Berlim, em 1989. Eles mantinham então 315 mil soldados na Europa; em 2021, eram 63 mil.

Há duas semanas, quando visitou a Holanda para tratar do envio de tropas à Romênia, o general Burkhard disse esperar que os americanos sempre estejam ali para a “segurança coletiva” europeia. “Se um dia não quiserem ou não puderem mais, não podemos dizer: é uma pena, não há o que fazer. Isso não é aceitável. A autonomia estratégica para a Europa é só uma dura realidade.”

Para tanto, a França precisará de parceiros continentais. É aí que entraria a Alemanha. “Para que a Europa tenha autonomia estratégica, a Alemanha não pode ser café com leite”, disse o coronel Paulo Filho. Assim, a guerra na Ucrânia colocaria em discussão o tabu do rearmamento alemão.

Hoje, os alemães são o grosso das tropas da Otan na Lituânia. São 1,6 mil homens com um papel simbólico, mas que foram visitados na semana passada pela ministra da Defesa, Christine Lambrecht. Aos poucos, surge na liderança alemã a ideia de rever a Ostpolitik, a política de normalização das relações com os russos, adotada nos anos 1970.

Soldados russos em direção à Ucrânia; conflito deverá gerar choque nos preços de commodities Foto: Stringer/ EFE

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Também são discutidos gastos em defesa. Hoje, o país mantém unidades militares mistas com França, Holanda e Polônia. Há soldados alemães nos três vizinhos. Com os franceses, eles mantêm uma brigada mista desde 1989, com sede na Alemanha. Subordinada ao Corpo de Reação Rápida Europeu, foi por meio dela que o 291.º Jagerbataillon se tornou a primeira unidade alemã estacionada na França desde a 2.ª Guerra.

Para especialistas, essas iniciativas são limitadas, mas podem servir de exemplo à nova estratégia europeia. “É difícil imaginar um cenário sem uma Alemanha mais armada. A discussão não é mais a Ucrânia, mas como vai se organizar a Europa. A retórica não parou Putin”, disse Coelho.

Eis o desafio. “São 70 anos sob o guarda-chuva americano. Culturalmente, muitos alemães não querem um Exército com papel marcante na sociedade”, afirmou Kenkel. Nesse contexto, o desabafo do general seria uma crítica velada aos políticos e seus eleitores, algo como “vocês nos deixaram nessa situação”, em que a autonomia estratégica da Europa é uma miragem. Ou como lembrou Kenkel, sem os americanos, os russos vão parar em Paris. 

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