Análise|Como a Ucrânia pode aproveitar melhor o pacote de ajuda dos EUA

Qualquer mudança decisiva no campo de batalha dependerá de como a Ucrânia utilizará as armas americanas, especialmente da sua capacidade de colocar em risco as posições russas na Crimeia ocupada

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Atualização:

A aprovação de mais de US$ 60 bilhões em nova ajuda militar à Ucrânia parece a cavalaria chegando à cidade para salvar o dia dos mocinhos. É um momento a ser saboreado em uma Washington brevemente bipartidária – e ainda mais pelas tropas em combate nas linhas de frente na Ucrânia.

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Mas sejamos francos: a entrega de um grande pacote de ajuda dos EUA significará a continuação desta sangrenta guerra de atrito, e não o seu fim. Embora seja um avanço psicológico para Kiev e um revés para Moscou, qualquer mudança decisiva no campo de batalha dependerá de como a Ucrânia utilizará as armas americanas – especialmente da sua capacidade de colocar em risco as posições russas na Crimeia ocupada.

Os potenciais agentes da mudança no conflito são os recém-chegados mísseis de médio alcance ATACM-300. Estas armas de precisão permitirão à Ucrânia atacar em profundidade o território ocupado pela Rússia na Crimeia, no Donbass e nas regiões costeiras, atingindo aeródromos russos, depósitos de abastecimento, áreas de preparo e centros de comando e controle na Ucrânia.

Projeteis de artilharia são estocados em uma fabrica de munição em Scranton, Pensilvânia  Foto: Matt Rourke/AP

O ATACMS “vai degradar a logística russa dentro da Ucrânia no curto prazo”, disse um funcionário do alto escalão do governo na terça feira. “No longo prazo, a Rússia terá de reconsiderar a sua estratégia.” Isso poderá eventualmente abrir caminho para uma paz negociada justa.

Os analistas russos reconhecem que perderam o embalo. Com a nova ajuda americana, “é possível algum aumento no potencial defensivo da Ucrânia, e também no ofensivo”, segundo Dmitry Stefanovich, investigador de um centro de estudos estratégicos associado à Academia Russa de Ciências. Ele acrescentou que, em um nível “simbólico”, a ajuda dos EUA “vai claramente levantar o moral das forças armadas ucranianas”.

Vasily Kashin, outro analista em Moscou, alertou sobre novas pressões militares sobre a Rússia. “A Ucrânia terá armas adicionais de alta precisão que utilizará contra as nossas tropas e o nosso território.” Ele acrescentou que as novas armas de defesa aérea para a Ucrânia “voltarão a limitar o uso da aviação russa”, que nas últimas semanas tem atingido centrais elétricas e outros alvos na Ucrânia quase à vontade.

Forças russas tem aproveitado a falta de defesa aérea ucraniana para atacar usinas de energia no país vizinho  Foto: Genya Savilov/AFP

Os comentários dos dois especialistas russos foram citados esta semana por um site russo chamado RTVI. Eles foram traduzidos e enviados a mim na terça feira pelo general de brigada da reserva Kevin Ryan, ex-adido de defesa em Moscou.

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Com que rapidez as novas armas dos EUA poderão ser entregues à Ucrânia? William B. Taylor Jr., antigo embaixador dos EUA em Kiev, acredita que, como o Pentágono pré-posicionou munições e outros suprimentos no sul da Polônia, os novos equipamentos poderão chegar “em questão de dias”. Funcionários do governo concordam que algumas munições de artilharia essenciais poderiam até ser entregues em poucas horas, dependendo de quantos caminhões a Ucrânia conseguir reunir.

A Ucrânia se vê desesperadamente carente de sistemas de defesa aérea e, também aqui, a ação do Congresso reduzirá a probabilidade de um desastre. Defender os céus da Ucrânia é um problema complicado, porque o país tem uma mistura de sistemas da Otan e da era soviética. A ação do Congresso permitirá o envio rápido de interceptadores dos EUA, e o governo Biden está correndo para obter equipamentos soviéticos de nações parceiras que costumavam ser aliadas de Moscou.

As fracas defesas aéreas da Ucrânia também serão reforçadas pelo que o Pentágono chama de programa “FrankenSAM”, adaptando lançadores construídos na União Soviética para utilizar mísseis terra-ar dos EUA. Esse experimento híbrido foi bem-sucedido, disse o funcionário do alto escalão do governo.

As autoridades americanas estão exortando os ucranianos a utilizarem a nova ajuda militar para consolidarem as suas linhas e se manterem firmes durante o restante de 2024, em vez de precipitar outra contra-ofensiva como a investida mal sucedida do ano passado na direção do Mar de Azov. “Precisamos que eles ganhem força este ano para poderem retomar território no próximo ano”, disse o funcionário do alto escalão do governo.

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Os analistas russos alertam que, apesar de todos os seus problemas recentes, a Ucrânia não estava à beira do colapso. “Na verdade… não houve fracasso na frente, não houve abandono das grandes e até das pequenas cidades. Os militares ucranianos não estão se rendendo em massa, etc.”, observou o comentário da RTVI, acrescentando que a Ucrânia tem “um número impressionante” de tropas reservistas.

“Os russos estão tão cansados e desmoralizados quanto os ucranianos”, argumentou Taylor. Embora Moscou e Kiev estejam repletas de rumores de um grande ataque russo, Taylor se mostra cético. “Se os russos tivessem a capacidade de avançar, teriam feito isso” durante os meses de atraso no pacote de ajuda dos EUA, disse ele.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com militares russos em Moscou  Foto: Mikhail Metzel/AP

Um modelo para a resistência da Ucrânia é a Finlândia, que lutou contra a dominação russa durante 75 anos antes de finalmente aderir à Otan no ano passado. Essa história é contada em uma nova tradução para russo e inglês de um livro intitulado “Como a Finlândia Sobreviveu a Stalin”, que é lido com atenção em Moscou, de acordo com o embaixador da Finlândia em Washington, Mikko Hautala.

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Josef Stalin pensou que poderia dominar a Finlândia, tal como Vladimir Putin acreditava que poderia dominar a Ucrânia. Cada um deles acreditava que não estava enfrentando um país real, mas sim reconquistando um remanescente rebelde do império russo. Parafraseando uma frase do livro: qual é a ideia da Ucrânia? Sobreviver.

Graças ao presidente Biden e a uma expressiva maioria bipartidária no Congresso – e acima de tudo ao que podem ser centenas de milhares de ucranianos mortos e feridos que lutaram nos momentos mais sombrios – a sobrevivência de uma Ucrânia independente parece mais certa hoje do que há uma semana. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Análise por David Ignatius
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