Culto a Chávez é comparado ao de Evita

Decisão de embalsamar presidente facilita ligação de sua imagem com a de Eva Perón, 'mãe dos pobres' e ex-primeira-dama argentina

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Foto do author Leonencio Nossa
Por Leonencio Nossa e CARACAS
Atualização:

Se a adoração da imagem de Hugo Chávez nas ruas de Caracas já lembrava o populismo latino-americano dos anos 50, o embalsamamento do corpo do líder bolivariano facilitou a vida de analistas que tentavam formular uma versão venezuelana do mito de Eva Duarte Perón - primeira-dama argentina que teve o cadáver preservado e tornou-se um fardo para os inimigos de seu marido, Juan Domingo Perón.Ontem, na longa fila que contornava a Academia Militar, a decisão do presidente interino, Nicolás Maduro, de preservar o corpo de Chávez numa redoma de vidro já causava efeitos políticos. "O embalsamamento de nosso comandante é uma decisão perfeita", afirmou a professora Noris Loaeza, de 43 anos, que passou a noite na fila para ver Chávez. Ela mora em Valencia, capital do Estado de Carabobo, a 150 quilômetros de Caracas. "Não podíamos ver estragar o corpo de quem não morreu e nunca morrerá", afirmou. "Ele (Chávez) vive forte no coração de todos que melhoraram de vida, que nada tinham antes de seu governo." Vista pela oposição como uma estratégia clara de Maduro para ganhar um cabo eleitoral eterno, o embalsamamento de Chávez pode ajudar no perfil do ex-presidente traçado por críticos de dentro e de fora da Venezuela.Para eles, Chávez, que tentou chegar ao poder por meio de um golpe, em 1992, e venceu quatro eleições com personalismo e carisma, não poderá ser visto como um líder popular moderno, como o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, ingênuo, como o boliviano Evo Morales, ou longevo, como Fidel Castro. Portanto, restou a imagem da "mãe dos pobres" dada a Evita.Chavistas. A dois quilômetros da entrada da academia, um grupo de simpatizantes gritava: "Com Chávez e Maduro, o país está seguro" - o que pode ser interpretado como jingle de uma chapa em que o titular é um morto e o vice, um vivo. Jean Carlos del Mar, de 23 anos, era um deles. Ele avalia que Maduro mostrou que reconhece o papel de Chávez no "futuro" da Venezuela. "Para nós, Chávez não morreu. Se morreu, a morte pouco importa", afirmou. Há dois anos, Jean Carlos conseguiu um emprego num órgão público responsável por ações na área da juventude.Ao lado de Jean, a professora Cirlex Barrios, de 20 anos, disse que o embalsamamento permitirá que muitos outros venezuelanos possam "recorrer" a Chávez sempre que precisarem nos próximos anos. Ela viajou 12 horas de ônibus da cidade de Santa Bárbara de Zulia até Caracas para acompanhar o velório. "O embalsamamento permitirá, de alguma forma, manter Chávez na nossa companhia."Atraso. A veneração do corpo não é a única ilustração de uma Venezuela parada na década de 50. A professora Tania Castillo, de 36 anos, da cidade de Bolívar, diz que leciona para crianças que vivem em situação de extrema pobreza. "É uma pena que Chávez tenha ficado apenas 14 anos no poder. Ele tirou muitas pessoas da pobreza, mas muitos ainda vivem em situação difícil", disse.O motorista John Martínez, de 47 anos, defendeu a decisão de Maduro de preservar o corpo de Chávez. "Nunca veremos outro homem mais puro. Então, é melhor manter o corpo numa redoma de vidro", ressalta. "Para muitos que moram em Miraflores e La Mercedes (bairros nobres de Caracas), é difícil ver milhares de pessoas adorando um morto." Com eleições presidenciais ainda sem data, a imagem de Chávez começa a sair da propaganda eleitoral antecipada de Maduro e da veneração dos simpatizantes e chegar ao comércio ambulante, que emprega boa parte dos trabalhadores da capital venezuelana. Sem o mesmo culto à morte registrado em culturas como a mexicana e a boliviana, os caraquenhos começam a conviver com um morto de forma descontraída. Chávez virou santo de escapulários, joão-bobo, bonecos no estilo amigo da Barbie e estampa de camisetas e bonés. A história do militar golpista e mito popular já é contada em histórias em quadrinhos e especiais de rádios e TVs.

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