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Em tempos de pandemia, startups ajudam no planejamento da morte

A pandemia de coronavírus atraiu novos negócios para startups que fornecem serviços para o fim de vida que vão desde o planejamento imobiliário até um tuíte final

Por Jennifer  Miller
Atualização:

Certo dia de abril, enquanto o coronavírus devastava Nova York, Isabelle Rodriguez, de 24 anos, preparou um tuíte que pretendia enviar do seu túmulo. Ela não estava morrendo. Sequer estava doente. Na realidade, o seu risco de contrair covid-19 se reduziu depois que concordou em tirar licença do emprego em uma livraria em Manhattan e foi para a sua cidade natal, Callahan, na Flórida. Mas quando descobriu o poema Lady Lazarus, de Sylvia Plath, Isabelle entendeu que havia encontrado as palavras perfeitas para escrever no seu legado digital: "Senhor Deus, Senhor Lúcifer. Cuidado. Cuidado".

Isabelle acessou o Cake, um serviço gratuito que cataloga os últimos desejos, instruções e documentos dos usuários, e especificou que queria que o verso fosse enviado de sua conta no Twitter depois de sua morte. “Qualquer um dos meus amigos sabe que sou obcecada por Sylvia Plath”, disse Isabelle. “Essa foi a melhor maneira de revelar a minha personalidade pela última vez”.

Cemitério em Denver, Colorado; jovens recorrem a startups para planejar o fim da vida Foto: Rick Wilking/Reuters

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Por meio do Cake, Isabelle também preencheu um formulário “sobre uma pessoa de confiança para decidir o que fosse preciso”, e indicou sua irmã mais nova para que tomasse todas as decisões se ela ficasse incapacitada. E ainda estava debatendo outros detalhes importantes.

Ela queria ser sepultada ou cremada? Neste último caso, gostaria que suas cinzas fossem espalhadas na natureza, pressurizadas em um diamante, compactadas em adubo para as plantas? E mais: Incomodaria os convidados para o seu funeral se pedisse que o seu álbum favorito Wolfgang Amadeus Phoenix fosse tocado durante a cerimônia?

Isabelle admitiu que talvezparecesse um pouco estranho pensar em tudo isso quando ainda tinha menos de 25 anos. Por outro lado, os jovens em todo o mundo estavam ficando incrivelmente doentes, e de maneira incrivelmente rápida.

Decidir sobre o fim da sua vida pode ser algo opressivo, mas, para Isabelle, fazer tais escolhas quando ainda era saudável dava a ela maior controle. Concluindo que aliviaria o peso para a família se acontecesse o pior, ela sentiu também grande paz de espírito. “Será mais fácil se as pessoas ao meu redor souberem o que eu quero”, falou.

Antes da pandemia, as startups que cuidam do fim da vida de uma pessoa – empresas que ajudam a planejar o funeral, a dar um destino aos restos mortais e acompanham o processo do luto – haviam registrado um crescimento de firme a moderado. As fundadoras são, em geral, mulheres que esperam que uma mescla de tecnologia, personalização e novas ideias possa competir no setor, um sistema antiquado e predominantemente masculino e no de planejamento de gestão de bens.

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No entanto, vender a morte a pessoas de pouco mais de 20 ou 30 anos não foi fácil no começo. A equipe da Cake às vezes recebia e-mails de jovens que indagavam se o site não era um pouco mórbido. As coisas mudaram desde a covid-19. Millennials agora se preocupam com a própria mortalidade, e se sentem cada vez mais confortáveis falando sobre o tema, e muito provavelmente lamentam uma perda ou conhecem alguém que viveu esta experiência.

“O estigma e os tabus em relação ao tema da morte diminuíram”, disse uma das fundadoras da Cake, Suelin Chen, de 38 anos. Com isso, o assunto se espalhou por toda as redes sociais, intensificando o interesse nos ‘deathfluencers’, algo como ‘mortefluenciadores’ (que discutem como as funerárias estão lidando com o coronavírus, mas também se o seu bichinho de estimação comerá os seus olhos), e aumentou a procura dessas plataformas. De fevereiro a junho, as assinaturas na Cake quintuplicaram.

Outra nova empresa, a Lantern, que se define “a única fonte de orientação para navegar a vida antes e depois da morte”, viu um aumento dos usuários de 123%, a maioria deles com menos de 45 anos.

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O tom abordado pela Lantern é relaxante e sincero, mas nem todos assumem essa estratégia. A Cake se esquiva brincando. Ela tem um gerador de lápides e também sugestões como o “Funeral Viking”, ou “jogue minhas cinzas no espaço”. A New Narrative, uma empresa de planejamento de eventos, para funerais e memoriais, se apresenta com uma piscada. “Não somos o funeral da sua avó (... a não ser que seja o funeral da sua avó)”.

É uma oportunidade complicada para estas startups aproveitarem. “Quando você tem uma marca que interage diretamente com pessoas arrasadas pela perda e pela dor, precisa tomar muito cuidado”, disse Liz Eddy, de 30 anos, uma das fundadoras e diretora executiva da Lantern.

Alyssa Ruderman e Liz Eddy (D), fundadoras da startupLantern Foto: Dan Scully Jr. via The New York Times

Todas as criadoras enfatizam que não estão tentando capitalizar com o coronavírus. Mas isso não impediu ninguém de se voltar para a covid-19. As empresas criaram novos fóruns e conteúdos sobre como planejar a morte e honrar os mortos. Elas têm programas com as principais provedoras de assistência médica por meio das quais disseminam mais amplamente os seus produtos, e formaram novas parcerias com influenciadores. As startups começaram até mesmo a coordenar-se entre si, compartilhando dicas em um canal Slack chamado Death & Co.

Elas acreditam que a pandemia será o evento que tornará o planejamento para o fim da vida – desde preparar um funeral a escrever um testamento e até o tuíte final –uma fase comum da idade adulta.

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O jogo do obituário

Em 2012, um amigo convidou Chen e seu noivo para um jantar e sugeriu que eles praticassem um jogo incomum: escrever e compartilhar o próprio obituário. “Será engraçado!” disse o amigo. “É um jogo comum na Escola de Administração de Empresa em Stanford”.

No começo, Chen gostou muito do exercício: ela e o noivo escreveram, usando o tempo passado imaginário, sobre um álbum de música que esperavam gravar um dia. Mas quando Chen começou a ler o que havia escrito a respeito de sua carreira, teve um acesso de pânico e começou a gritar na mesa.

“Eu perdi a cabeça”, ela lembra. “Foi confuso para mim, porque eu adorava o meu trabalho. Estava feliz, mas havia uma parte de mim...” Ela não tinha certeza de como descrever a emoção.

Mais ou menos nesta época, Chen aconselhava as seguradoras da área da saúde a respeito de estratégia comercial. Enquanto entrevistava médicos oncologistas, fazia continuamente cálculos: “Se esse tratamento prolonga a vida por três meses, quanto vale em dinheiro?” E no entanto pensava: Mas qual será a qualidade da vida? O sistema que prolonga a vida a todo custo parecia fora de sintonia.

Chen também perdera recentemente o avô, que morreu aos 95 anos depois de um longo período de sofrimento. Ele morava em Taiwan, onde a morte em uma idade muito avançada é comemorada, disse Chen. E no entanto houve muito conflito familiar a respeito dessa experiência.

Entre a dor e o alívio pelo fato de o avô estar por fim descansando e a alegre comemoração da vida dele, Chen compreendeu que precisava de um novo caminho. Ela ainda não sabia qual seria, mas anos mais tarde conheceu Mark Zhang, um médico de tratamentos paliativos e tecnólogo, em uma maratona de programação do MIT. O casal ganhou o primeiro lugar no evento e pouco depois fundou o Cake. A plataforma agora inclui recursos e modelos para ajudar os usuários a escrever seus obituários, além de orientações sobre como publicá-los.

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A empresa financiada por capital de risco ganhou dinheiro graças a parcerias e, em breve, oferecerá serviços pagos. Na pandemia, esteve particularmente atarefada. Os serviços da Cake, por exemplo, serão integrados no site do banco britânico RBS/NatWest.

Em abril, Chen soube que a Partners HealthCare, um grande sistema de assistência médica de Massachusetts, recomendava a Cake para todos os seus membros. A Ariadne Labs, que saiu da Escola de Saúde Pública de Harvard e Brigham and Women’s Hospital, também entrou em contato. Ela queria ajudar a distribuir seu guia de conversação sobre o fim da vida, alémdo público relativamente restrito a médicos e pacientes. Também queria o feedback em tempo real de um público jovem e saudável como o da Cake.

A Cake também se associou ao Providence Health System, uma rede de 51 hospitais e mil clínicas em sete Estados, para compartilhar o formulário Cake, sobre “um tomador de decisões de confiança”, o documento que especifica as preferências médicas de um indivíduo, caso ele se torne incapacitado. Graças à Cake, os indivíduos podem apresentar o formulário ao seu médico sem precisar de um notário e de duas testemunhas que não pertencem à família, como frequentemente é exigido, mas é difícil conseguir na quarentena.

O passo seguinte é oferecer serviços de qualidade, específicos para diferentes tipos de usuários. “Você está aqui porque acaba de perder alguém, ou porque você só tinha um filho, ou tem pais idosos, ou porque uma celebridade acaba de morrer e você teve uma crise existencial?”, disse Chen. “Estamos tentando nos automatizar com base no que sabemos a respeito da pessoa.”

Os sucessos da pandemia

Durante a pandemia, os acessos à Cake relacionados à condolências dobraram. Para atender essa demanda, a empresa criou um fórum onde os usuários podem expor suas perguntas e preocupações.

A Lantern fornece seu próprio conteúdo de pesar e condolências, incluindo um guia "à prova de pandemia" para “tratar do luto de maneira inclusiva”. Nos últimos meses, aumentou o número de pessoas em luto, onde o sofrimento emocional para as pessoas não-brancas por causa das taxas elevadas de coronavírus entre a população negra e latina se mescla à angústia provocada pela brutalidade da polícia.

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“Particularmente durante a covid, como poderemos incorporar o processo do luto trabalhando diariamente das nove às cinco?” disse Alica Fornerest, de 31 anos, que orienta oficinas de luto e acaba de abrir uma agência de consultoria para ajudar as empresas a lidar com o problema. “Empregadores, gerentes e os departamentos de RH precisam compreender que a carga é ainda maior para as pessoas não brancas e particularmente para negros ao se sentarem na frente do seu computador pela manhã, quando se espera que cumpram sua obrigação com empenho."

Alica Fornerest, de 31 anos,orienta oficinas de luto e empresas a lidar com o luto no ambiente de trabalho Foto: Jana Josue via The New York Times

Para Alica e outras fundadoras millennials, preparar-se para a morte e atravessar o período de luto durante a pandemia tornou-se uma forma de autoajuda. Isso criou novas oportunidades e parcerias. Quando Eddy reuniu alguns financiadores, ela situou os serviços de fim de vida da Lantern como um mercado inexplorado de aproximadamente US$ 4,5 trilhões na indústria do bem-estar.

”Fomos chamados de nicho de mercado”, afirmou. “Mas a morte e o processo de fim de vida é talvez o mercado que menos pode ser considerado um nicho atualmente."

As corporações estão repensando os programas de bem-estar que oferecem aos funcionários, disse Eddy. Não se trata apenas de frequentar uma academia de ginástica e de tomar kombucha. Alguns estudos concluíram que conseguir falar sobre a própria mortalidade torna as pessoas mais felizes e melhora o seu relacionamento. Talvez para os empregadores o intuito seja que o acesso a serviços de fim de vida torne os indivíduos mais felizes no trabalho (e mais produtivos).

Esse mercado em potencial é também o motivo pelo qual a Near, uma startup que oferece suporte ao luto e ao fim da vida, como as doulas da morte, e ainda arte, som, música e massoterapeutas, decidiu recentemente buscar investimentos. A companhia adiou sua estreia de junho para setembro e está expandindo suas ofertas para provedoras de cuidados de fim da vida nada convencionais como fotógrafos.

“Antes da covid, procurávamos ser uma plataforma menor. Poderíamos ir em frente lidando com esta necessidade procurando facilitar as coisas”, afirmou Christy Knutson, de 36 anos, uma das fundadoras da Near. “Mas a demanda se tornou muito maior”.

A Trust and Will, uma empresa que se define uma espécie de Turbo Tax (software de preparação de imposto americano) para o planejamento de bens, cobra o equivalente a um pequeno percentual do que a maioria dos advogados costumam cobrar.

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A Eterneva, que transforma o corpo da pessoa que amamos em objeto de ostentação, acaba de apelar para o financiamento. Os serviços básicos de pré-planejamento da Cake e da Lantern são gratuitos. Considerando que o custo médio de um funeral, em 2019, era US$ 7.640, esse tipo de previsão poderá reduzir o preço da morte. Porque talvez você não queira definhar em um respirador ou precise de um caixão.

Por fim, sepersonalizarmos a nossa morte assim como fazemos com o nosso casamento e o nosso armário, talvez pensemos que temos um pouco mais de controle sobre a maior incerteza da vida. É uma maneira de encarar em termos positivos este momento extremamente assustador. “Nunca voltaremos ao mundo que existia antes”, disse Chen. “Isto é algo positivo – aceitar a realidade de que não somos imortais”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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