NAIRÓBI - Criador de gado na Somália, Omar Hussein não está participando da luta global por uma vacina contra a covid-19. Ele sequer tem certeza que o imunizante vai chegar em sua cidade, no sudoeste do país. Aos 28 anos, o jovem passou a maior parte de sua vida em uma região infiltrada por rebeldes islâmicos ligados à Al-Qaeda e acredita que há problemas maiores que a pandemia.
“Eu sei que a covid-19 mata, todo mundo sabe disso. Ela matou muitos nos países ocidentais, mas não aqui, graças a Deus”, disse o pai de três filhos à agência Reuters. Hussein, cujo nome foi alterado para proteger sua identidade, deu a entrevista, por telefone, de sua casa na cidade de Bulo Fulay, região da Baía da Somália.
“Antes da vacina, precisamos de outras coisas. Precisamos de comida, água, saúde e abrigo. Nosso povo está morrendo por falta de necessidades básicas. Vamos precisar da vacina quando formos libertados, agora estamos basicamente cercados.”
Ainda que Hussein tenha outro nome, sua história é a mesma de milhões de pessoas em toda a África que vivem em áreas de conflito armado, da Somália e Sudão do Sul à Líbia e Nigéria. Sejam as prioridades mais urgentes, o medo de remédios “estrangeiros” ou uma ameaça sempre presente de ataque, existem muitos obstáculos para vacinar pessoas presas em zonas de conflito, dizem instituições de caridade.
Grande parte do continente ainda não recebeu qualquer vacina, mas os trabalhadores humanitários temem que, assim que as vacinações nacionais começarem, pessoas como Hussein sejam deixadas de fora. “As vacinas devem estar disponíveis para todos. Onde você mora ou quanto dinheiro tem não deve determinar sua capacidade de recebê-la”, disse Sean Granville-Ross, diretor na África da agência humanitária internacional Mercy Corps. “Temos de incluir os mais vulneráveis, como as pessoas que vivem em zonas de conflito, que normalmente enfrentam discriminação e marginalização e podem ser esquecidas”.
O Banco Mundial estima que 2 bilhões de pessoas, uma em cada quatro da população mundial, vivem em países onde os resultados do desenvolvimento são afetados por fragilidade, conflito e violência (FCV).
Na lista do Banco Mundial deste ano, dos 39 países afetados pela chamada FCV, 21 são africanos. Dentre eles, estão Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Moçambique e República Democrática do Congo.
Os riscos já são maiores em tais locais por conta das condições de moradias apertadas e superlotadas, falta de água potável ou saneamento básico e a existência de um sistema de saúde desgastado pelo conflito, dizem instituições de caridade. Portanto, quando ocorrem surtos de doenças, elas se espalham rápida e amplamente.
Reino Unido pede cessar-fogo pelas vacinas
Levar vacinas até essas áreas de disputas – muitas remotas – já é um passo difícil. Acrescente a isso o desafio de alcançar milhões de pessoas que estão em movimento, desenraizadas pela violência, e a escala do problema da inoculação entra em foco.
Um segundo obstáculo para qualquer campanha de vacinação é: como chegar lá. Remotas, na melhor das hipóteses, muitas áreas foram arrasadas pelo conflito e perderam sua infraestrutura básica. Estradas, pontes, telecomunicações, energia – tudo pode estar frágil ou destruído.
Mas o maior dos obstáculos é a insegurança. Profissionais de saúde correm o risco de morte, ferimentos ou sequestros para fazer seu trabalho. Houve mais de 1.200 ataques a profissionais de saúde, instalações médicas e veículos em 20 países em conflito em 2019, afirma a Coalizão de Conflitos de Proteção à Saúde (Safeguarding Health in Conflict Coalition, em inglês). Pelo menos 150 profissionais de saúde morreram, mais de 500 ficaram feridos e cerca de 90 foram sequestrados como resultado.
Nessa conta, estão incluídos o voluntário de conscientização sobre ebola fatalmente esfaqueado pela milícia Mai-Mai na República Democrática do Congo, um dispositivo explosivo improvisado em um veículo que matou um médico na Somália e uma invasão em um hospital em Camarões por militantes do Boko Haram, que deixou quatro vítimas.
Agências humanitárias e alguns países pedem cessar-fogo e corredores seguros para que os profissionais de saúde possam vacinar os vulneráveis com segurança.
O ministro das Relações Exteriores da Reino Unido, Dominic Raab, disse na quarta-feira, 17, ao Conselho de Segurança da ONU que 160 milhões de pessoas correm o risco de serem excluídas das vacinações contra o coronavírus por conta de conflito, incluindo no Sudão do Sul, Somália e Etiópia.
“O cessar-fogo local é essencial para permitir que ocorram vacinações que salvam vidas. E são essenciais para proteger os bravos profissionais de saúde e trabalhadores humanitários que trabalham em condições incrivelmente desafiadoras em conflito”, disse Raab. “O cessar-fogo foi usado para vacinar as comunidades mais vulneráveis no passado. Não há razão para não podermos fazer isso”, disse ele, citando um programa de vacinação contra a pólio no Afeganistão.
Desinformação ganhando confiança
Os desafios não param por aí, dizem as instituições de caridade. Ainda que as vacinas sejam compradas, transportadas e entregues em zonas de guerra, convencer as pessoas a tomá-las é outro obstáculo.
Devido à fraca governança, as pessoas que vivem em zonas de conflito têm maior probabilidade de serem expostas a informações falsas ou descontextualizadas. O que significa que os rumores, como o coronavírus só afetar estrangeiros ou que vacinas são um meio de esterilização em massa, circulam sem controle e de maneira rápida.
É mais difícil de se ganhar a confiança do público em um conflito, onde moradores podem enfrentar discriminação, corrupção, marginalização e negligência, muitas vezes nas mãos de seu próprio governo, dizem agências humanitárias. Quando as pessoas vinculam as campanhas de saúde aos governos, essa falta de confiança pode frustrar rapidamente as campanhas de vacinação, acrescentam.
“Precisamos reconhecer que realmente falta confiança em muitos desses contextos”, disse Esperanza Martinez, chefe de saúde global do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). “As comunidades desconfiam, não só da vacina, mas do que lhes é dito porque realmente não sabem se as informações que estão recebendo são corretas”.
Os trabalhadores humanitários dizem que as lições podem ser aprendidas com os surtos de ebola anteriores na África, onde instituições de caridade trabalharam com líderes comunitários para combater mitos e promover medidas como a lavagem das mãos.
Organizações como a Mercy Corps dizem que treinaram mais de 15.000 mensageiros da comunidade para ajudar a combater a desinformação em suas próprias aldeias, atingindo 2,4 milhões de pessoas na Libéria. Ao longo de cinco meses, a aceitação de profissionais de saúde mobilizados em unidades de tratamento de ebola nessas áreas aumentou de 15% para 68%.
Mas, para muitas pessoas, a vacina simplesmente não é uma prioridade. Na cidade de Djibo, no norte de Burkina Faso, que é infiltrada por jihadistas, alguns moradores disseram que o governo deveria considerar outras questões primeiro.
“A prioridade é encontrar uma solução para o terrorismo porque o terrorismo matou mais pessoas do que o coronavírus em Burkina”, disse Boubakari Dicko, o emir de Djibo, por telefone. / REUTERS
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