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Estações de esqui ficam sem neve durante inverno da Europa e mostram como deve ser o mundo no futuro

Mudanças climáticas causam invernos quentes em regiões historicamente frias; vilarejos se veem forçados a alterar o modo de vida

Por Rick Noack

LES GETS – Com crianças correndo em torno de cactos infláveis e ciclistas de montanha bronzeados sob o céu azul, a vila francesa de Les Gets parece um destino invejável para passar as férias de verão neste início de 2023. O problema é que estamos no inverno do Hemisfério Norte e ninguém está neste vilarejo em busca de sol.

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Historicamente, a estação de esqui deste vilarejo em meio aos Alpes deveria estar coberta por camadas de neve grossas, gelo e ainda mais neve. Este ano, em vez de chalés revestidos de gelo, os turistas de Les Gets, localizada em uma altitude de quase 1,2 mil metros, encontraram um ambiente lamacento e não puderam esquiar devido a um inverno atípico pelo calor. Metade das pistas de esqui francesas foram fechadas, competições de esportes de inverno foram cancelados e aqueles que esquiam por hobby agora clamam por reembolsos.

Este inverno pode ser um vislumbre do que está por vir em um mundo sob aquecimento, com as temperaturas médias subindo duas vezes mais rápido em regiões do Alpes do que em outros lugares.

Homem pratica esqui em pedaço de neve em La Feclaz, na França, em imagem do dia 5. Apesar da Europa estar em pleno inverno, temperaturas permanecem altas e neve não cai na região Foto: Laurent Cipriani / AP

Enquanto parte dos turistas em Les Gets se adaptaram rapidamente à onda de calor em meio ao inverno – alugando bicicletas em vez de esquis e substituindo o vinho quente por cerveja gelada –, muitos moradores lutaram para afligir a sensação progressiva de que este pode ser o começo do fim do esqui nesta região dos Alpes. E, consequentemente, o começo do fim da vida como eles conhecem. “Isso é mais do que ‘aquecimento’”, disse o morador Fabrice Dumaine, de 52 anos. “Geralmente a temperatura é de -5 graus aqui neste momento, agora estamos em 15 graus. Mesmo alguns verões são mais frios.”

Nas semanas sem neve deste inverno, Dumaine perdeu cerca de um terço dos negócios que normalmente possui. “O que assusta é a incerteza”, acrescentou.

Muitos moradores esperam que este ano possa ser uma exceção. Parte lembra que na década de 1960 havia semanas sem neve em Les Gets. Neste vilarejo e em outros resorts da região, as temperaturas mais baixas e a neve retornaram nos últimos quatro dias.

Entretanto, para os pesquisadores, a tendência em regiões como esta é clara: nos próximos 7 a 17 anos, será impossível praticar esqui nas montanhas de média altitude, e as camadas de neve diminuirão rigorosamente nas partes mais altas das cadeias montanhosas, segundo a geógrafa francesa Magali Reghezza-Zitt.

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Segundo algumas estimativas, a neve poderá diminuir 30% e 70% nos Alpes até o fim do século, afetando até mesmo resorts que estão seguros no momento. As últimas semanas foram “um exemplo impressionante de como o futuro a médio prazo pode ser”, disse o pesquisador de turismo da Universidade de Innsbruck, na Áustria, Robert Steiger.

Nas cidades dos Alpes, o esqui como lazer tem um forte valor cultural e um peso econômico. Desde que houve a ampliação dos resorts nas décadas de 1960 e 70, os esportes de inverno têm sido essenciais para a economia da região. Quase meio milhão de empregos permanentes ou sazonais dependem desse ramo na França, que compartilha os Alpes com outros sete países que também dependem das montanhas para a economia.

Assim, muitos vilarejos europeus trataram a falta de neve nas últimas semanas como uma crise existencial. Canhões de neve foram implantados para congelar artificialmente gotas de água em cristais de neve. Em algumas, pilhas de neve foram levadas em caminhões ou despejadas em helicópteros, mas as tentativas serviram apenas para cobrir pequenos trechos que logo apareceram nas redes sociais como algo distópico.

Teleférico fechados temporariamente durante o inverno em Le Revard, nos Alpes franceses Foto: Laurent Cipriani/AP - 05/01/2023

A neve artificial manteve pelo menos algumas das pistas de esqui abertas em Les Gets na semana passada, mas a prática foi uma experiência insatisfatória para muitos. “Todo mundo fica no mesmo pedaço de neve, e é uma neve muito ruim”, disse o turista holandês Marius van Hasselt, de 21 anos. Alguns de seus amigos decidiram voltar para casa antes da hora.

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Ao mesmo tempo, os esforços para manter os negócios funcionando a todo custo estão cada vez mais levando as estações de esqui para o centro de um debate climático mais amplo e particularmente divisivo: por quanto tempo os setores econômicos aparentemente condenados devem continuar em um mundo em aquecimento?

Ativistas comemoraram quando o governo espanhol proibiu em 2021 a operação de trechos de uma pequena estação de esqui perto de Madri, citando em parte uma queda de 25% no volume de neve nos últimos 50 anos e um impacto ambiental cada vez mais injustificável.

Nos Alpes, ativistas climáticos alertam que o uso mais frequente de canhões de neve agravará a seca. A água se perde no processo artificial de fabricação de neve, como resultado da evaporação, a direção do vento e outros fatores. A França, onde alguns reservatórios d’água secaram no verão passado, não pode se dar ao luxo de ter essa água retirada da circulação natural, dizem ativistas.

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Nas últimas semanas, canhões de neve em pelo menos cinco vilarejos de esqui alpinos foram sabotados, incluindo La Clusaz, Les Gets e o resort Verbier da Suíça. “Nada de esquiar sem neve”, dizia uma mensagem pulverizada em um canhão em Les Gets, ao lado do símbolo do grupo de ativismo climático Extinction Rebellion. (O grupo negou responsabilidade.)

Necessidade de transição ecológica

Para a presidente do grupo ambientalista Mountain Wilderness France, Fiona Mille, é urgentemente necessário começar a pensar sobre a transição ecológica do modelo socioeconômico da região, em vez de tentar resolver o problema com neve artificial. Isso pode significar tirolesas em vez de teleféricos e pistas de tobogã de verão em vez de colinas de trenó de inverno em resorts de baixa ou média altitude.

Em trechos dos Alpes, o fim do esqui não está apenas próximo, argumentam os ativistas, mas atrasado. O prefeito de La Clusaz, Didier Thévenet, disse que os resorts estão sendo injustamente criticados, porque é fácil se envolver em “ataques contra o esqui”. “Na mente das pessoas, é para os ricos, usamos água, usamos energia. Usamos cimento, construímos muito. Para eles, estamos errados sobre tudo”, declarou durante uma entrevista em uma pequena cabana no pico da sua aldeia, com vista para a montanha mais alta da Europa Ocidental, o Mont Blanc, onde a neve ainda é abundante. “Esquiar representa tudo o que os ambientalistas não gostam”, acrescentou.

Os operadores de estações de esqui citam as práticas ambientais que adotaram nos últimos anos: redução do uso de combustível poluente para a limpeza da neve e incentivo para os turistas chegarem em trens de alta velocidade em vez de carros que congestionam as estradas das montanhas. “Estamos convencidos de que há um caminho para operar de forma razoável em áreas de esqui em harmonia com a natureza”, disse Laurent Reynaud, que representa a associação de áreas de esqui da França.

Área de esqui fechada temporariamente devido ao baixo volume de neve em Le Revard, na França, no dia 5 deste mês Foto: Laurent Cipriani / AP

As autoridades de La Clusaz reconhecem que precisarão aumentar o uso de canhões de neve para permanecerem tendo lucro nos próximos anos. Entretanto, a vila recentemente citou preocupações ambientais ao rejeitar a oferta lucrativa de uma grande rede hoteleira para construir um novo resort. As autoridades trabalham para desenvolver um setor de turismo de verão maior, enquanto exploram o potencial fechamento de pistas de esqui que são particularmente vulneráveis em invernos quentes.

“O que pedimos ao público e às associações [ambientais] é que nos deem tempo para trabalhar com autoridades eleitas, engenheiros, especialistas e consultores, para trazer essa evolução do nosso modelo econômico”, disse Jean-Philippe Monfort, chefe do escritório de turismo da vila.

Mas pode haver limites econômicos e tecnológicos para o quanto e com que rapidez aldeias como La Clusaz podem se adaptar. Os esquiadores gastam muito mais em passes de elevador e aluguel de equipamentos do que os caminhantes contribuem para a economia local. “Teremos menos dinheiro e provavelmente reduziremos nosso padrão de vida”, disse Thévenet.

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Mudanças perceptíveis na última década

Parte do prejuízo já é sentido. Nicolas Chauvin, de 23 anos, um dos milhares de trabalhadores sazonais nas estações de esqui francesas, deveria começar a trabalhar como garçom em La Clusaz no fim de novembro. Entretanto, ele teve que depender do seguro-desemprego durante um período em que a neve já deveria estar caindo. Quando finalmente caiu, ele não tinha certeza se a espera tinha valido a pena. “As cabines do teleférico estão todas vazias”, disse.

As mudanças climáticas mudaram sua vida mais de uma vez nos últimos anos. Quando ele estava trabalhando em um restaurante de um resort de praia durante o verão, ondas de calor recordes em toda a Europa mantiveram a maioria das mesas vazias por semanas. “Tenho apenas 23 anos, mas nos últimos 10 anos, tudo mudou completamente”, disse ele. “Precisamos reinventar tudo.”

Para alguns resorts, pode ser tarde demais. Muitas estações de esqui menores já lutam para “cobrar o preço que seria necessário para administrar um negócio lucrativo”, disse o pesquisador de turismo Steiger, o que significa que eles têm pouca margem financeira para investir em outras áreas.

Os resorts podem acumular tanta dívida que acabarão sendo forçados a sair do negócio sem ter construído alternativas viáveis a longo prazo, alertam os pesquisadores. “Um terreno baldio – seja turístico ou industrial – é um terreno baldio”, disse Reghezza-Zitt.

Onde alguns veem terrenos baldios, outros sentem oportunidades. Em uma trilha remota de La Clusaz que nos invernos passados geralmente só era acessível com sapatos de neve, um fluxo de turistas de tênis e botas de caminhada suou em temperaturas de até 13 graus na semana passada. Alguns riram dos sinais de alerta de “avalanche” que estavam na grama verde em frente a encostas estéreis.

Mesmo que alguns teleféricos no resort ainda estivessem funcionando, Geraldine Guironnet, de 49 anos, não se juntou ao marido e ao filho na tentativa de esquiar naquele dia. Ela temia que, depois de acostumada por excelentes condições de esqui no passado, ela não teria gostado de deslizar sobre a cobertura de neve esparsa que restava. “Eu amei”, disse ela sobre a caminhada. “Você só tem que se adaptar.”

Inverno quente é ‘loucura absoluta’

Maximiliano Herrera, um climatologista que rastreia os extremos climáticos globais, chamou o inverno quente deste ano de “totalmente insano” e “loucura absoluta” em mensagens de texto para a Capital Weather Gang. Segundo ele, algumas das altas temperaturas noturnas observadas eram incomuns no meio do verão. É “o evento mais extremo já visto na climatologia europeia”, escreveu Herrera. “Nada se compara a isso.”

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Guillaume Séchet, um meteorologista de transmissão na França, concordou, twittando que o domingo foi um dos dias mais extraordinários da história climática da Europa. “A intensidade e extensão do calor na Europa agora é difícil de compreender”, twittou Scott Duncan, um meteorologista baseado em Londres.

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