O ex-Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, conhecido pelo seu realismo e pragmatismo na seara da política externa, ao tratar da União Europeia, perguntou certa vez para quem deveria ligar, se quisesse tratar de assuntos internacionais de importância.
A crítica implícita na pergunta ganha novos contornos em face do atual conflito na Ucrânia, que desafia os países europeus a apresentarem uma resposta uníssona e efetiva em matéria de Defesa.
Com efeito, a Política Externa e de Segurança Comum (PESC) da União Europeia trazida pelo Tratado de Maastricht (1992) como um de seus pilares é historicamente uma área de difícil colaboração e coordenação, problema que não foi resolvido com a criação do cargo de Alto Representante para a PESC em 1999.
Notadamente, as dificuldades apenas aumentaram com as recentes pressões à integração europeia, entre as quais está incluída a saída do Reino Unido do bloco.
A análise de gastos em Defesa dos países europeus mostra que se em 1990 os países da União Europeia gastavam cerca de 2,5% de suas economias em Defesa, tal número hoje é mais próximo de 1,5%, abaixo dos 2% recomendados pela Otan como patamar mínimo necessário. Esta diferençacorresponde a 85 bilhões de dólares anuais.
Não por acaso, em meio a sua histriônica condução da política externa americana, Donald Trump fez questão de contestar a conduta europeia em relação a Otan, colocando os tradicionais parceiros contra a parede e deixando claro que o eixo central dos interesses dos EUA tinha sido deslocado para a Ásia.
Talvez a mensagem tenha se perdido em meio ao personagem, mas o então Presidente dos EUA não poderia ter sido mais claro quando advertiu a Alemanha quanto à necessidade aumentar os seus gastos em Defesa.
As sucessivas reduções de tropas americanas no continente europeu acentuaram a necessidade de a Europa encontrar soluções próprias para a sua defesa coletiva.
A contínua dependência do artigo 5 da Otan, que estabelece o compromisso coletivo de defesa em caso de ataque armado a um de seus membros, parece pouco para o continente europeu dormir tranquilo, em especial no que se refere aos seus membros orientais.
A ação russa causa apreensão em membros mais recentes da União Europeia e da Otan e um cenário possível para o deslinde da hoje questão ucraniana é aquele no qual a Rússia testará a resiliência e apetite destas organizações quanto à contenção de possíveis pretensões expansionistas.
As sanções atualmente em discussão, embora importantes, não parecem ter o condão de impedir qualquer conduta beligerante. Por sua vez, Moscou sabe que é responsável por mais de 40% do gás e do carvão que aquecem e fazem girar a economia europeia, e não hesita em usar tal dependência como anteparo que evitará sanções com maior capacidade de impactar sua economia.
A Europa tardiamente parece perceber que detém pouco controle sobre seu destino. Na seara energética e estratégica, várias foram as escolhas que levaram em conta a redução de custos imediatos e desconsideraram os efeitos colaterais estratégicos de tais opções. Do outro lado, a incapacidade de construir alternativas energéticas coloca a Europa como refém dos interesses russos.
Haverá um enorme desafio de convencer a sociedade europeia que um aumento de gastos em Defesa é necessário, algo recentemente visto com desconfiança e como desnecessário.
Se os líderes europeus um dia acreditaram que a Otan seria a mãe de todas as soluções, fica a lembrança do saudoso craque brasileiro Garrincha, que ao receber instruções técnicas antes de um jogo na Copa de 1958, perguntou: o Senhor já combinou com os russos?
* Carlos Frederico de Souza Coelho é Professor da ECEME e da PUC-Rio. * Guilherme Moreira Dias é Professor da ECEME.
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