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Letônia caça licença de jornalistas russos exilados por suspeitas de ‘lealdade a Putin’

País abrigou os jornalistas dissidentes, mas agência reguladora das telecomunicações na ex-república soviética revogou a licença de transmissão do canal, em razão do que qualificou de ‘ameaças à segurança nacional’

Por Anatoli Kurmanaev
Atualização:

O advento da guerra na Ucrânia colocou aos jornalistas do mais notório canal de TV independente da Rússia uma escolha difícil: arriscar ser presos por causa do novo banimento do governo ao seu trabalho, parar de trabalhar ou deixar o país. Diante da escolha, jornalistas do canal TV Rain se juntaram às centenas de colegas russos no exílio e finalmente se estabeleceram na Letônia, onde continuaram a rejeitar a propaganda do Kremlin e denunciar sua agressão a milhões de espectadores dentro da Rússia.

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Na terça-feira, porém, dias depois de um correspondente fazer um chamado que não estava no roteiro por ajudas não especificadas para os soldados russos, a agência reguladora das telecomunicações na Letônia revogou a licença de transmissão do canal, em razão do que qualificou de “ameaças à segurança nacional”. Enquanto autoridades da Letônia e da Ucrânia acusam a emissora de apoiar o esforço de guerra da Rússia, a TV Rain está atualmente envolvida na maior crise de seus 12 anos de existência.

A controvérsia, que custou o emprego do jornalista, também expõe como os exilados políticos russos enfrentam dificuldades para encontrar um papel no conflito lançado por seu país, particularmente em nações do Leste Europeu, como a Letônia, que foram controladas por Moscou no passado.

Nesses países, o apoio à Ucrânia é motivado em parte pelo temor de uma agressão russa e pela suspeita em relação a suas próprias minorias de etnia russa, e ocorre em meio ao cenário histórico das dificuldades que enfrentaram sob domínio da União Soviética.

Cobertura da guerra por canal de jornalistas exilados criou polêmica na Letônia, uma ex-república soviética  Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Um canal ‘apátrida’

“A equipe deixou a Rússia para continuar mostrando a realidade da guerra da Rússia ao povo russo”, afirmou uma das cofundadoras da TV Rain, Vera Krichevskaia, que vive em Londres. “Mas ficamos sem território. Não temos nenhum direito na Rússia e nenhum direito na Europa.”

A controvérsia começou após o noticiário noturno da quinta-feira, quando o jornalista Alexei Korostelev, conhecido âncora da TV Rain, pediu aos telespectadores para mandarem informações a respeito de soldados russos recrutados para um disque-denúncia que o canal estabeleceu com o objetivo de tornar públicas irregularidades no processo de mobilização.

“Esperamos ser capazes de ajudar muitos soldados, entre outras coisas com equipamentos ou apenas itens básicos no front”, acrescentou ele.

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A resposta foi imediata.

“Quando ‘russos do bem’ ajudam ‘russos do mal’ o mundo entende que no fim eles são todos a mesma coisa?”, escreveu o ministro ucraniano da cultura, Oleksandr Tkachenko.

A revogação da licença da emissora ocorreu após uma investigação a respeito das declarações de Korostelev. A agência reguladora dos meios de comunicações na Letônia afirmou que foi a terceira violação das regras praticada pela TV Rain, acrescentando que possui informações confidenciais das forças de segurança do Estado.

‘O nosso Exército’

Na semana passada, a agência reguladora multou a TV Rain por usar um mapa que mostrava a Crimeia como parte da Rússia e referir-se às forças russas como “nosso Exército”.

O ministro da Defesa da Letônia, Artis Pabriks, foi além, pedindo a expulsão dos jornalistas do canal.

Mesmo antes da terça-feira, apoiadores do Kremlin tinham reagido, qualificando a indignação contra a afirmação como um exemplo da hipocrisia europeia.

“O caso da TV Rain mostra a muitos emigrados anti-Putin que não há liberdade por lá”, escreveu no Telegram um ex-conselheiro do Kremlin, Sergei Markov.

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Para tentar conter o estrago, a TV Rain demitiu Korostelev horas depois de seu comentário e afirmou que a empresa jamais forneceria ajuda a nenhum militar.

Em um post no Telegram, na sexta-feira, Korostelev se desculpou pelo comentário, que segundo ele foi tirado de contexto.

A diretora da TV Rain Natalya Sindeyeva  Foto: AP Photo/Alexander Zemlianichenko, File

Sucesso no YouTube

A TV Rain tem 3,7 milhões de assinantes no YouTube. Entre 18 e 22 milhões de usuários individuais acessam seu canal no YouTube mensalmente, com até 80% dos acessos dentro da Rússia, afirmou Tikhon Dziadko, editor-chefe da emissora, que também possui canais a cabo em cinco países com grandes populações de russófonos.

A perda da licença privou a TV Rain de acesso à rede de transmissão a cabo da Letônia, e o canal no YouTube também poderá ser banido na Letônia, afirmou Krichevskaia, a cofundadora da TV Rain. Ela acrescentou, contudo, que a emissora continuará a transmitir sua programação na rede social em outros países até que obtenha uma nova licença.

Um tópico que ressoou intensamente entre os telespectadores foi a decisão do presidente Vladimir Putin de mobilizar pelo menos 300 mil homens para repor as baixas militares da Rússia na Ucrânia. Essa decisão confrontou milhões de russos com a realidade da guerra, que muitos haviam ignorado ou menosprezado anteriormente.

Korostelev, o correspondente, afirmou em entrevista telefônica, no domingo, que em seu apelo tentou ajudar conscritos russos coletando informações a respeito de má conduta das autoridades e posteriormente documentando os casos. Ele disse que não estava pedindo doações para os soldados.

Korostelev afirmou que expôs um dilema fundamental diante dos jornalistas russos e dos exilados russos antiguerra em geral: como eles podem se conectar com seus compatriotas em seu país sem minimizar sua agressão?

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“Indubitavelmente, os ucranianos são as primeiras e principais vítimas da guerra, mas o sofrimento dos russos também é importante”, afirmou Korostelev, que deixou a Rússia após sua invasão à Ucrânia. “Se eles estão morrendo nesta guerra, então eles também são vítimas.”

Humanização em xeque

Nos Estados bálticos, porém, tentativas de humanizar soldados russos são particularmente controvertidas. Muitas minorias de etnia russa nesses países apoiam o Kremlin em suas reivindicações por unificação do povo russo, e suas populações aumentam desde que mais russos começaram a chegar após o início da guerra.

Depois do comentário de Korostelev, a agência de segurança da Letônia classificou os jornalistas russos no país como um “risco de inteligência”, porque eles podem ter laços com agências de inteligência de Moscou ou porque podem ser espionados pelo Kremlin.

Mas alguns jornalistas russos na Letônia afirmam que a estigmatização de qualquer grupo de nacionalidade ou etnia estrangeira contraria valores fundamentais da União Europeia e testa o comprometimento do bloco em apoiar russos em fuga da perseguição política.

“A Letônia está comprometida com sua política de apoiar a mídia independente, incluindo aqueles forçados a fugir da Rússia”, afirmou a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Letônia, Diana Eglite, na terça-feira. Ela acrescentou que seu país emitiu cerca de 470 vistos para jornalistas russos e suas famílias desde o início da guerra.

Contudo, “a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia mudou a situação de segurança dramaticamente também para a Letônia”, acrescentou ela.

A TV Rain se deparou com outros problemas na Letônia, disse Krichevskaia, incluindo por se referir aos militares da Rússia como “nosso Exército”, pelo que a emissora foi multada separadamente. Segundo a cofundadora da emissora, isso sublinha um ponto delicado. “Para sermos acessíveis aos telespectadores russos, capazes de nos conectar com eles de maneira a suscitar uma resposta, temos de conversar com eles como russos”, afirmou ela. “Temos de poder falar para eles que o nosso Exército é responsável por 40 mil atrocidades.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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