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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O poder do sentimento

Líderes militares dão apoio a protestos que remetem a séculos de injustiça contra os negros

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Atualização:

A rede americana de cafés Starbucks proibiu seus funcionários de usar roupas e acessórios alusivos ao movimento Vidas Negras Importam porque violam suas regras contra manifestações “políticas, religiosas ou pessoais”. A informação saiu na quarta-feira no site BuzzFeed. Dois dias depois, diante das críticas nas redes sociais, a empresa não só decidiu permitir o uso como distribuiu 250 mil camisetas com a mensagem, como já faz em relação aos direitos dos homossexuais.

General Mark Milley, em uniforme de combate, acompanha o presidente Trump após manifestantes terem sido reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo Foto: Doug Mills/The New York Times

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A exibição da forma como George Floyd foi morto pela polícia e os protestos que se seguiram deslocaram a fronteira do aceitável, no que diz respeito ao racismo, pelo menos em boa parte do mundo avançado. A tolerância, ou “normalização”, de violência contínua contra uma população que nos EUA e na Europa é minoria e no Brasil, maioria, diz respeito não só a questões objetivas, como a disparidade de renda entre negros e brancos, mas a sentimentos, como homenagens a figuras históricas associadas à escravidão.

Sentimentos podem não ser palpáveis, mas são tão ou mais poderosos que realidades socioeconômicas, sem contar que os dois campos se reforçam mutuamente. Dez bases militares americanas levam o nome de comandantes que lutaram pela manutenção da escravidão nos EUA. Se eles não tivessem sido derrotados na Guerra Civil (1861-65), os antepassados dos militares negros que servem nessas instalações teriam continuado escravos.

Esses militares negros são enviados para guerras em lugares longínquos, nas quais com enorme frequência encontram a morte lutando pelo seu país. 

Os líderes militares americanos demonstraram entender isso. O secretário de Defesa, Mark Esper, declarou-se aberto a rebatizar as bases que levam os nomes de comandantes confederados, além de declarar apoio aos protestos contra o racismo. O chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general Mark Milley, se disse “revoltado” com o assassinato de Floyd e afirmou que os protestos que ele desencadeou remetem a “séculos de injustiça contra os afro-americanos”.

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Ambos assumiram publicamente o desconforto com a própria presença no evento do dia 1.º, em que Donald Trump ameaçou usar as Forças Armadas para esmagar os protestos e caminhou até a Igreja St. John, enquanto militares e policiais dispersavam manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para o presidente passar. E assim provar sua “coragem”, depois de ter-se escondido no bunker da Casa Branca nas vésperas. “Minha presença naquele momento e ambiente criou a percepção dos militares envolvidos na política interna”, lamentou Milley.

As credenciais de Milley são impecáveis. Comandou tropas no Iraque e no Afeganistão. Em depoimento em janeiro no Congresso, justificou a ordem do presidente de matar o general iraniano Qassem Suleimani dizendo que havia inteligência sólida de que ele tramava ataques a alvos americanos. Essas evidências eram bem questionáveis. Milley se expôs por Trump. Mas ficou do lado do povo americano e da Constituição quando chegou a hora de escolher entre eles e o presidente.

Trump fugiu várias vezes do alistamento para lutar no Vietnã, alegando que tinha esporão, embora praticasse esportes. E parece não ter aprendido nada sobre a alma militar de lá para cá. “Minha administração não vai nem sequer considerar renomear essas instalações militares magníficas e fabulosas”, tuitou ele. “Não vão mexer com a nossa história de maior nação do mundo. Respeitem nossos militares!”

O presidente pretendia retomar seus comícios em Tulsa, Oklahoma, na sexta-feira, aniversário da abolição da escravidão nos EUA, mas desistiu após críticas. Tulsa foi palco de massacre de negros por brancos entre 31 de maio e 1.º de junho de 1921. À pergunta sobre o simbolismo disso tudo, Trump respondeu que marcou o comício sem saber de nada disso. Sem conhecer a cultura militar nem a história, em que o presidente baseia seus juízos sobre a grandeza de seu país?

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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