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É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|A Guerra da Rússia na Ucrânia contada por quem entende; leia artigo de Mario Vargas Llosa

Livro de Pilar Bonet é um manual didático para aqueles a quem, como o autor deste artigo, tomou de surpresa o ataque de Vladimir Putin para ficar com a Ucrânia

Foto do author Mario Vargas Llosa

Pilar Bonet, que foi correspondente na Rússia por vários anos, publicou um livro que se chama Náufragos do Império e que recomendo a todos os que, como eu, se sentiram confusos pela diversidade de informações que geram as versões oficiais e jornalísticas de Rússia e Ucrânia.

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Este interessante livro permite estabelecer de uma maneira gráfica os principais personagens do confronto entre Rússia e Ucrânia, que, descobrimos em suas páginas, se dividem numa multidão de partidos, grupos e até ofícios dos quais tínhamos pouca ideia no Ocidente.

É um manual didático para aqueles a quem, como o autor deste artigo, tomou de surpresa o ataque de Vladimir Putin para ficar com a Ucrânia, já que aborda com detalhe a origem do conflito, e também para quem está um pouco perdido com os nomes tão diversos das distintas localidades afetadas e dos dirigentes políticos desses países, que, nos revela a correspondente, têm uma longa vida com antecedentes que permitem esclarecer muitos aspectos do que sucede.

Ukrainian tank crews attend a military exercise, amid Russia's attack on Ukraine, in North Ukraine September 8, 2023. REUTERS/Gleb Garanich 

É muito difícil retransmitir o livro de Pilar Bonet, mas as suas instruções e vias para não nos perdermos nesse magma são claras, e a autora as conforma para apresentar esse caos como o que ele não é; ou seja, um mundo ordenado, onde a loucura de um visionário demente provocou uma catástrofe na qual o número de vítimas e deslocados alcança cifras pavorosas.

Pilar Bonet passou vários anos em Moscou e se nota que ela viajou muito por toda a região, não somente às capitais ou cidades principais, porque sua informação sobre os distintos grupos, partidos e personagens tem uma simplicidade que facilita extraordinariamente a localização das ações bélicas. O livro Náufragos do Império permite que se faça uma ideia das situações que ocorrem em todas as regiões da Ucrânia.

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A primeira das surpresas que acomete quem o lê é que grande parte da Ucrânia, incluindo as zonas mais afastadas da ação, está comovida pela guerra e que em muitos lugares afetados não há somente camponeses e militantes, mas também artistas, pois se trata de um país que vem fervilhando com sua capacidade múltipla para criar espectáculos de alto nível e manifestações artísticas.

Pilar Bonet tem uma clara visão dos fatos e condena, desde logo, a intervenção russa na Ucrânia, mas a partir daí é objetiva e apresenta os personagens principais, tanto do lado russo quanto do ucraniano, de uma maneira convincente, segundo as ações de cada grupo para estabelecer-se e resistir. A Ucrânia não é, como talvez poderia se acreditar, um mundo primitivo, um tanto bárbaro.

Nada disso. Trata-se de cidades sofisticadas, nas quais há uma vontade artística de primeira ordem e uma vida política extraordinariamente diversa, que a autora relata com minúcia. Pode parecer estranho, mas este livro, manchado de sangue, é, não obstante, ameno e simpático, porque apresenta os personagens em seus melhores paramentos e funções.

É verdade que há milhares de mortos, mas as virtudes de um bom relato dominam sempre, e a autora as conforma em todos os casos para apresentar os grupos políticos de maneira amável e até risonha. O contexto não pode ser mais horrível, dezenas de milhares de pessoas sofrem, perdem seus lares, enfrentam situações tremendamente trágicas e, não obstante, ela relata esse mundo explosivo sem truculência, graças também aos muitos idiomas que a autora conhece e que permitem uma grande aproximação com os personagens que entrevista ou revela à luz de seu anonimato.

A soldier of Ukraine's 3rd Separate Assault Brigade looks on against the background of an APC near Bakhmut, the site of fierce battles with the Russian forces in the Donetsk region, Ukraine, Monday, Sept. 4, 2023. (AP Photo/Libkos) 

A Ucrânia é um mundo muito vasto e com uma intensa vida política, cujos partidos disputam entre si de forma aguerrida a liderança do país mediante votações muito estritas. É um país de alto nível social e educacional, sobre o qual recaiu um tremendo conflito, no qual, a autora admite, há poucas esperanças de solução. A negociação que virá ao fim e que selará uma paz entre ambos os países, assim esperamos, está tardando em chegar e tardará ainda algum tempo, porque os exércitos em questão são de alto voo e a Rússia tem armas para fazer durar a guerra.

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A Ucrânia, de sua parte, recebe um apoio do Ocidente que lhe permite resistir. Mas os donos dessas armas deveriam exigir uma negociação o quanto antes para pôr fim às matanças cotidianas naqueles territórios (os Estados Unidos acabam de exigir também da Ucrânia maiores esforços contra a corrupção em troca da ajuda econômica que Kiev precisa).

E quem luta não são apenas militares ou elementos perdidos, mas toda uma população civil, pessoas refinadas que perderam seus lares e que, segundo a autora permite entrever, têm uma extensa trajetória cívica. Trata-se de um livro surpreendente, pois quem o lê descobre que a terra em disputa não é de terceiro ou quarto mundo, como muitos creem, mas um lugar com cidadãos de alto nível, hoje convertidos em milicianos, orgulhosos de seus colégios e suas instituições, que agora estão em ruínas, e de suas cidades que, sob os bombardeios selvagens, ainda resistem, mesmo que perdendo inumeráveis compatriotas.

Ludmila, left, says goodbye to her granddaughter Kristina, who with her son Yaric, leave the train station in Odesa, southern Ukraine, on Tuesday, March 22, 2022. The U.N. refugee agency says more than 3.5 million people have fled Ukraine since Russia's invasion. (AP Photo/Petros Giannakouris) 

Chama a atenção no livro o fato de os políticos estarem sempre ali, e Pilar Bonet, que parece familiarizada com os idiomas locais, nos coloca muito perto deles, produzindo-nos uma sensação de horror, em um livro que quer ser ao mesmo tempo — e é — simpático.

O conjunto da Ucrânia se mostra por completo: vamos desde Kiev, a capital que luta e resiste, às ásperas terras nas quais o império russo trata de aventurar-se, de Odessa a Kharkiv, Mikolaiv, Zaporizhzhia e várias outras mais, cidades que vão desaparecendo apesar da fortaleza de seus moradores, que muitas vezes morrem sem munições e que perderam tudo com os bombardeios.

O livro de Pilar Bonet, como mencionei, é risonho apesar do material que coloca ao alcance dos leitores ser enormemente grave, porque tem a ver com a vida e a morte de muitos milhares de pessoas. Graças à linguagem, que ela sabe utilizar com maestria para nos aproximar de lugares que frequentou e figuras políticas que conhece, ela consegue evitar que nos asfixiemos com os horrores da guerra.

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O relato tem, ademais, a virtude de exigir a mobilização das pessoas. Não é possível continuar assistindo ao longe essas matanças. É necessário uma mobilização das pessoas que vivem em paz para que ela seja alcançada também pelos ucranianos, a partir de uma negociação que levante o espírito desse povo que vai perdendo sua gente a cada bombardeio.

A autora tem carinho por essas terras e deseja que essa paz venha prontamente. E sua contribuição é muito grande, já que ela utiliza o material que reuniu para nos aproximar de uma guerra que causa inúmeras mortes diante da indiferença de boa parte do mundo.

A invasão russa à Ucrânia não deve nos deixar impávidos. É necessário atuar e empurrar os adversários para a negociação. A Rússia atacou, e as artes da guerra a favorecem, mas o Ocidente, que é mais civilizado e mais bem preparado para esses trâmites, deveria poder tomar partido de sua superioridade moral e lutar incansavelmente por essa multidão que defende seu direito à existência, sem humilhações nem castigos, tratando de alcançar negociações de paz. Quanto antes isso ocorrer, melhor será para ucranianos e russos, pois a invasão continua cobrindo de sofrimento ambos os lados. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Mario Vargas Llosa

É prêmio Nobel de Literatura

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