Moradores de cidade-chave da Ucrânia desconheciam anexação da Rússia até local ser retomado

Russos anunciaram anexação de Liman, mas cidade foi retomada pelos ucranianos um dia depois; sem eletricidade, rádios e internet, moradores desconheciam anexação

Por Andrew E. Kramer
Atualização:

LIMAN – Enquanto Elena Kharkovska aguardava o crepúsculo no pátio do edifício onde mora, ela contemplava uma informação que tinha acabado de receber: sem nem sequer sair do lugar, ela havia supostamente vivido na Rússia por um dia.

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O presidente Vladimir Putin decretou na sexta-feira, 30, que quatro regiões da Ucrânia – incluindo Donetsk, onde fica Liman, a cidade em que Kharkovska vive – haviam sido anexadas à Rússia. Mas antes que as notícias pudessem alcançá-la, soldados ucranianos retomaram o controle da cidade, e as forças russas recuaram.

Sem eletricidade, rádio nem internet, afirmaram moradores da cidade de Liman, eles não souberam da grandiosa cerimônia que Putin organizou no Kremlin para celebrar uma anexação que grande parte do mundo condena e qualifica como ilegal.

“Eu não soube nada a respeito disso”, afirmou Kharkovska enquanto cozinhava trigo-sarraceno em uma fogueira. A cidade está sem gás de cozinha há meses.

Construção destruída em Liman, na Ucrânia, em imagem do domingo, 2. Ucrânia retomou cidade e forçou militares russos ao recuo Foto: Nicole Tung / NYT

“Estou chocada”, afirmou ela, rindo. “Ninguém nos disse nada” na sexta-feira sobre sua cidade ter sido supostamente anexada à Rússia, nem no sábado, quando as tropas ucranianas a recuperaram. “Para mim é engraçado porque me recorda de um ditado: ‘Me casaram sem eu saber’”, acrescentou.

A vertiginosa velocidade com que a Rússia possuiu e depois perdeu Liman sintetiza a energia do ataque que a Ucrânia empreende há um mês para retomar território de Moscou. A libertação de Liman, um estratégico polo ferroviário, não é apenas uma vitória importante, é também um símbolo poderoso da valente capacidade da Ucrânia de humilhar publicamente um inimigo maior e ostensivamente mais poderoso.

As forças ucranianas contam apenas com uma breve janela para expandir sua contraofensiva antes que os soldados mobilizados na convocação ordenada por Putin no mês passado reforcem as posições russas na Ucrânia. Depois, cidades ucranianas localizadas nas áreas que a Rússia agora considera território soberano russo poderiam voltar para o controle russo.

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O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, e líderes ocidentais qualificaram como inválidas e ilegais as alegações de anexação da Rússia. O território, afirmam eles, é e continuará sendo da Ucrânia. A ágil recaptura de Liman pelo Exército ucraniano horas depois do discurso de Putin enfatizou a precária posição do líder russo sobre os ditos territórios anexados. Em uma retirada às pressas, os russos deixaram para trás documentos oficiais, veículos militares e corpos de soldados.

O recuo sublinha a fraqueza do Exército russo, afirmam analistas militares ucranianos e ocidentais, mas também pressagia um risco elevado de escalada. Uma Rússia humilhada poderá responder acionando milhares de soldados recém-recrutados ou seu arsenal nuclear, que é o maior do mundo.

O Exército ucraniano, inferior em armas e contingente em relação às forças russas, retomou Liman usando uma estratégia de atacar estradas e vilarejos próximos, sem engajar-se em uma batalha frontal pela cidade, afirmou o ex-coronel do Exército Serhii Hrabski.

Combatendo nas florestas de pinheiros, em ambos os lados do Rio Oskil, as forças ucranianas avançaram de vilarejo em vilarejo, cortando efetivamente todas as rotas de reabastecimento e retirada das tropas russas, afirmou ele. Para os russos, atravessar as florestas de pinheiros tornou-se uma manobra letal.

Soldados ucranianos próximos a uma construção destruída em Liman, em imagem deste domingo, 2. Estratégia ucraniana para retomar local foi atacar estradas e vilarejos Foto: Nicole Tung / NYT

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“O sucesso crucial da operação em Liman decorreu de termos abandonado qualquer ideia de ataque frontal”, explicou o coronel Hrabski. Foi apenas uma questão de tempo, acrescentou ele, para os soldados russos em Liman ficarem sem munição e combustível.

Quando cheguei à cidade, no domingo, a densa floresta que a cerca exibia sinais da feroz batalha, de semanas, que transcorreu. Galhos quebrados na estrada, vilarejos inteiros arruinados no caminho.

“Olhe as casas destruídas”, afirmou Roman Plakhaniv, tenente da polícia do Distrito de Kramatorsk, que chegou à cidade no domingo para reforçar o patrulhamento. “Era uma cidade agradável e normal. E pessoas de outro país apareceram para destruí-la.”

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O vento do outono cobria de folhas as ruas da cidade. Cães abandonados corriam entre as casas. Caminhões de entrega de pão continuavam estacionados no diante de uma padaria arruinada, à espera de encomendas matinais que jamais ocorreram.

A polícia afirmou que, dos 22 mil habitantes da cidade antes da guerra, 5 mil ficaram.

Era uma cidade agradável e normal. E pessoas de outro país apareceram para destruí-la

Roman Plakhaniv, tenente da polícia do Distrito de Kramatorsk

No domingo, soldados e policiais ucranianos patrulhavam as ruas em busca de russos retardatários. Explosões ocasionais eram ouvidas, à medida que equipes antiminas detonavam minas terrestres. No mais, a cidade parecia firmemente sob controle ucraniano.

Diante do gabinete do prefeito, pôsteres de propaganda russa foram rasgados e queimados numa fogueira. Decorados com o branco, azul e vermelho da bandeira russa, seus restos se molharam com a chuva. Um deles explicava a importância dos símbolos do Estado russo: a bandeira e o hino nacional.

Dentro da prefeitura havia cartazes explicando como solicitar licenças de construção sob a autoridade de ocupação e telefones para solicitar pensão para as autoridades russas, sugerindo planos para a burocracia russa fincar raízes.

Morador de Liman cozinha com fogo à lenha, em imagem do domingo, 2. Habitantes da cidade estão sem acesso à eletricidade, rádios e internet Foto: Nicole Tung / NYT

Exemplares de um jornal chamado República de Donetsk estavam espalhados pelo chão. Uma edição publicada em 15 de setembro, com um artigo sob manchete, “Defesa da República e das fronteiras da Rússia”, parecia tentar aplacar a preocupação enquanto a contraofensiva ucraniana ganhava terreno.

O artigo explicava que “o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que, no curso da operação especial, a Rússia não está perdendo força militar e defenderá sua soberania”.

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Os destroços da retirada russa e as bandeiras amarelas e azuis da Ucrânia tremulando, porém, evidenciavam a falsidade das afirmações do jornal, assim como as mentiras do presidente que o veículo citava.

Além de retirar minas terrestres, os esforços iniciais de restaurar o controle deverão ter foco em investigar crimes de guerra e restabelecer o fornecimento de gás e eletricidade, afirmaram autoridades ucranianas.

Em certo ponto de uma estrada que leva à cidade, pude ver o que pareciam ser escombros de um ataque ucraniano contra soldados russos tentando fugir da cidade em uma van civil. As portas da van estavam abertas, e sacos de dormir, acolchoados, casacos militares, rações, sapatos e outros suprimentos estavam jogados na estrada. Próximo de lá, no acostamento, os corpos de meia dúzia de soldados russos jaziam próximos a minas antitanque.

Uma equipe antiminas da Ucrânia averiguava se alguma armadilha com explosivos havia sido instalada: os ucranianos amarraram cordas nos corpos e os moveram, a uma certa distância, para detonar eventuais explosivos. Indagado a respeito de como os russos tinham morrido, um soldado deu de ombros e afirmou: “Eles invadiram terra estrangeira”.

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