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Mulheres afegãs relatam 'último dia de trabalho' antes do domínio do Taleban

Em Herat, professora deu aula para sala de aula vazia, enquanto lamentava o futuro das crianças que ensinava; em Cabul, apresentadora de TV voltou às pressas para casa e ouviu 'piadas' sobre como seria 'controlada'

Por Bahaar Joya e Reuters
Atualização:

Quando o Taleban avançou sobre o Afeganistão, derrubando o governo e conquistando a capital, Cabul, há duas semanas, muitas mulheres viveram o que pode ter sido seu último dia de trabalho - entre elas cabeleireiras, empresárias, jornalistas e acadêmicas.

Amena Barakzai, professora de geografia e literatura em Herat, no Oeste do país, estava na escola quando soube que a cidade havia caído nas mãos dos rebeldes.

Seus alunos estão em férias, mas temendo nunca mais voltar ao trabalho que ama, Barakzai foi até o quadro-negro e ensinou uma sala de aula vazia.

Amena Barakzai dá aula de literatura a uma sala vazia em 12 de agosto;enquanto isso, Taleban tomava a cidade de Herat. Foto: via Thomson Reuters Foundation

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Sua "última lição" pode ser conferida na foto acima.

"Comecei a ensinar para as cadeiras vazias com lágrimas nos olhos", disse. "Eu sabia que não veria minhas meninas nesta classe novamente tão cedo."

Meninas e mulheres foram proibidas de estudar e trabalhar sob o regime anterior do Taleban, de 1996 a 2001. Embora o grupo radical islâmico tenha dito que as mulheres poderiam trabalhar em pelo menos algumas funções, muitos não acreditaram nelas.

Fui jornalista no Afeganistão até 2015, quando tive que fugir para a Grã-Bretanha por causa de ameaças de morte relacionadas ao fato de não usar o hijab e as histórias que estava cobrindo.

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À medida que o Taleban se aproximava, telefonei para algumas das mulheres que conheço em Cabul e Herat e pedi que enviassem uma foto sua no trabalho. Aqui estão suas fotos e seus relatos:

Sahraa Karimi, CEO da Afghan Film, empresa de cinema estatal do Afeganistão

Quando Cabul caiu nas mãos do Taleban, eu estava no banco. Todo mundo estava correndo em todas as direções para escapar.

No dia anterior, eu estava em meu escritório na Afghan Film, quando Bahaar me pediu para tirar uma foto para ela. Olhei em volta para o lugar que havia criado com meu coração e minha alma.

Eu sabia que o Taleban estava avançando, mas nunca imaginei que seria a última vez que veria meu escritório. Meus sonhos e esperanças para o futuro da indústria cinematográfica agora estão destruídos.

Hoje, depois de vários dias de escuridão, estou com raiva e me sinto muito, muito desesperada. Por que o mundo nos traiu? Por que eles nos deixaram assim?

À esquerda, Sahraa Karimi em selfie batida na frente do escritório da Afghan Film, em 15 de agosto; À direita, em foto tirada dias antes, ela trabalha com colegas. Foto: via Thomson Reuters Foundation

Amena Barakzai, diretora de uma escola para meninas na província de Herat

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Sou professora há 20 anos. Voltei para o Afeganistão com minha família em 2002 para fazer parte da criação de uma nova nação para meu povo. Desde então, ensinei muitas meninas e meninos em Herat e adoro meu trabalho.

Quando Herat caiu, eu estava na escola. Recebi um telefonema de meu filho dizendo: 'Mãe, estou indo para te levar para casa. O Taleban conquistou a cidade'. Foi como um martelo na minha cabeça.

Fiquei paralisado por alguns minutos e pensei que isso não poderia estar acontecendo tão rapidamente. Mas aconteceu e o exército das trevas conquistou minha bela cidade e minha escola.

Já estou em casa há uma semana. Os funcionários do Taleban em Herat disseram que deveríamos ficar em casa até que decidam nosso futuro papel.

Nosso futuro está nas mãos deles, mas não vejo futuro para minhas filhas sob seu regime.

Eu fugi do país há muitos anos, quando o Taleban assumiu o poder, e agora posso ser forçado a deixar minha casa, meu povo, minha escola e minhas filhas que enfrentam um futuro incerto e sombrio novamente.

Eu gostaria de ter sido morta em um de seus ataques suicidas e não estar aqui para ver o que estou testemunhando hoje. Meus alunos estão chorando, mas suas vozes não estão sendo ouvidas. Eu disse a eles que o mundo nos deu as costas. Fomos deixados para morrer aqui.

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Shabnam Popalzi, jornalista e apresentadora de TV

Quando o Taleban chegou a Cabul, eu estava fazendo um relatório sobre como os membros do parlamento estavam fora nas férias e não reagiam ao avanço do Taleban.

Foi o dia mais escuro e longo da minha vida. Tive que deixar tudo e correr de volta para casa. Alguns jovens na rua estavam contando piadas e dizendo: 'Agora o Taleban controlará você e seu tipo'.

Eu estava chorando e correndo. Eu estava tão desesperada e assustada que me perdi muitas vezes e não conseguia encontrar minha própria casa. Alguns homens estão felizes com o retorno deles, para que agora possam nos controlar e fazer o que quiserem conosco.

A jornalista e apresentadora de TV Shabnam Popalzi trabalhando na TV do Parlamento, em 15 de agosto, dia em que o Taleban tomou Cabul. Foto: via Thomson Reuters Foundation

Mujgan Kaveh, pesquisadora em uma organização internacional

Estou em Cabul com minha família, esperando um visto para ser retirada. Não está sendo processado e ninguém está nos respondendo. Consegui fugir de Herat dois dias antes de sua queda, mas também não estamos seguros em Cabul agora.

Tenho 29 anos e não tenho nenhuma lembrança do regime do Taleban, exceto as histórias de minha mãe sobre o período e como isso era assustador. Não acredito que depois de 21 anos estou vivendo suas memórias.

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Tenho uma menina de 6 anos. Não consigo imaginar o futuro que ela teria nesta escuridão. Esses medos estão me matando, e vou para o meu porão todos os dias e grito até não poder mais gritar.

Quero que o mundo me ouça e me diga por que eles deixaram minha filha e eu para morrermos aqui. Perdi meu emprego, meu direito de sair, de escolher minha roupa - tudo que eu poderia fazer como um ser humano livre, não posso mais fazer.

À esquerda, Mujgan Kaveh trabalha em seu escritório em Herat, em 10 de agosto, dois dias antes do Taleban tomar a cidade; à direita, Humaira Saqeb fala durante conferência sobre o papel das mulheres nas negociações de paz com o Taleban, em Cabul. Foto: via Thomson Reuters Foundation

Humaira Saqeb, CEO da Agência de Notícias da Mulher Afegã

Dediquei minha vida a educar mulheres, capacitando-as e relatando sobre suas vidas de algumas das áreas rurais mais remotas.

Minha equipe tem trabalhado para exigir que o governo e a comunidade internacional prestem contas dos direitos das mulheres e trouxemos mudanças positivas para a vida de milhares delas. Agora estou escondida em uma casa segura em Cabul.

Em um piscar de olhos, minha vida, meus sonhos, minha identidade foram tirados de mim.

Estou recebendo ligações de colegas mulheres em todo o país, e elas estão gritando de medo e perguntando por que o mundo as esqueceu. Por que suas vidas foram destruídas? Por que ninguém está respondendo aos seus pedidos de ajuda? Eu não tenho uma resposta.

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Eu sei que o Taleban diz que respeitará os direitos das mulheres de acordo com o Islã, mas qual interpretação? O Islã que eles apresentam não reconhece nossos direitos básicos como seres humanos iguais. Eu sei que eles mentem.

Querem apenas obter reconhecimento internacional e depois implementar uma agenda própria, que é bem conhecida e muito clara para nós e para todo o mundo.

Não confio neles e não vejo nenhum futuro neste país para mim como feminista, como defensora e ativista dos direitos das mulheres e como igual aos homens.

Veja o mapa do Afeganistão

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