Na batalha contra os russos, a cultura militar é a maior vantagem da Ucrânia; leia análise

Batalha de Kiev foi uma vitória épica e histórica, que será lembrada entre os exemplos de forças menores que derrotam adversários mais poderosos

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Por Max Boot
5 min de leitura

THE WASHINGTON POST - A guerra está longe de acabar, mas o triunfo da Ucrânia sobre as forças russas na Batalha de Kiev foi uma vitória épica e histórica — que será lembrada juntamente com a derrota da Armada espanhola, de 1588; a Batalha de Yorktown, de 1781; A Batalha de Isandlwana, de 1879; a Batalha do Estreito de Tsushima, de 1905; e a Batalha de Dien Bien Phu, de 1954, entre os exemplos de forças menores que derrotam adversários mais poderosos. Como os ucranianos obtiveram sucesso em repelir o poderoso Exército russo, que tantos esperavam ver marchando sobre Kiev em questão de dias?

Muita atenção tem sido dada, e compreensivelmente, aos sistemas de armamento de alta tecnologia fornecidos pelo Ocidente, como os mísseis antiaéreos Stinger e os mísseis antitanque Javelin. Mas os russos também possuem armas de alta tecnologia. A verdadeira vantagem dos ucranianos emana do campo da cultura militar — que, evidentemente, é um reflexo direto de sua sociedade.

Todas as numerosas deficiências do Exército russo foram expostas brutalmente durante sua não provocada invasão à Ucrânia. Entre elas, corrupção, brutalidade, baixo moral, mau planejamento, logística falha, inteligência ruim, falta de coordenação entre unidades, centralização excessiva e uma ausência de iniciativa por parte de oficiais de patente mais baixa e sargentos. Esses problemas não são novos — e não serão sanados no futuro próximo. Na realidade, um artigo de 1854 no qual a Economist explicou as derrotas iniciais da Rússia na Guerra da Crimeia — também combatida principalmente na Ucrânia — é assombrosamente parecido com os relatos das atuais dificuldades do Exército russo.

Soldado ucraniano assume posição no vilarejo de Barvinkove, na região de Kharkiv Foto: MARKO DJURICA

Duas das fraquezas russas identificadas pela Economist se sobressaem particularmente. A primeira: “Os Exércitos russos são com frequência exércitos só no papel. (…) Os coronéis dos regimentos e os oficiais do comissariado possuem total interesse em ter o quanto possível números grandes nos livros e pequenos nos campos — contanto que embolsem seus soldos e os mantimentos provenientes da diferença entre esses registros”.

A segunda: “Soldados comuns (…) não possuem amor pelo ofício e nenhum interesse no objetivo da guerra”. Isso ocorria porque o típico recruta russo era “apartado de sua família e sua terra, castigado pelo chicote, negligenciado por seus superiores, alimentado com pão preto, quando alimentado, sem nenhum conforto, com frequência sem sapatos”.

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A Economist atribuía essas aflições à “inadequação do poder despótico”. A revista notou que “traições, chantagens e corrupção impregnam completamente a tribo dos oficiais”, que “parece não haver nenhum tipo de culpa, muito menos discrição, a respeito disso” e que “consideração por verdade ou integridade não tem lugar no caráter russo”.

Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Um leitor moderno rejeitaria o pressuposto de que existiria um imutável “caráter nacional” russo, mas o restante da análise da Economist continua relevante. Isso pode ser explicado pelo fato de que a Rússia ainda é governada, como foi durante quase toda sua história, por uma ditadura brutal e corrupta.


Deficiências na administração pública ajudam a explicar os desempenhos desastrosos da Rússia conflito após conflito. A Rússia não perdeu apenas a Guerra da Crimeia (1853-1856), perdeu também a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), a 1.ª Guerra. (1914-1918), a guerra no Afeganistão (1979-1989) e a 1.ª Guerra da Chechênia (1994-1996). Suas principais vitórias militares — nas Guerras Napoleônicas a na 2.ª Guerra — ocorreram somente após os invasores terem sido estúpidos o suficiente para espalhar suas forças pela vastidão da Rússia e somente quando a Rússia foi imensamente auxiliada por aliados ocidentais.

O Exército da Ucrânia, descendente do Exército Vermelho, foi afetado inicialmente por muitas das mesmas dificuldades que os russos enfrentam, mas depois de 2014, as Forças Armadas ucranianas e o Estado ucraniano reformaram-se a si mesmos segundo as linhas do Ocidente e da democracia. Como nota o Politico, o treinamento que os ucranianos receberam dos militares ocidentais e a experiência que adquiriram combatendo os separatistas apoiados pela Rússia no leste subverteram “o antigo modelo soviético de liderança de cima para baixo que paralisou as unidades russas” e “produziu uma nova geração de comandantes de pequenas unidades e suboficiais capazes de pensar e agir autonomamente”.

Tapetes de ioga

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Tim Judah, do Financial Times, relata um exemplo revelador a respeito da engenhosidade e da iniciativa ucraniana na Batalha de Kiev. Ele descreve como “as forças de Moscou foram bloqueadas (…) pela espuma de tapetes de ioga — os ucranianos os chamam de karemats — que custam pouco (cerca de R$ 9)”. Os tapetes impediam que drones russos guiados por temperatura detectassem o calor das pessoas. “Levantamos os karemats sobre nossas cabeças”, afirmou (o comandante de batalhão Oleksandr) Konoko, explicando como seus homens se moviam ocultamente, em pequenos grupos, durante a noite. Desta maneira, soldados armados com mísseis antitanque fornecidos pelos EUA, pelo Reino Unido e por outros países foram capazes de surpreender os russos, disparando seus mortíferos e precisos projéteis e depois se esgueirando pelas sombras”.

Os russos poderão finalmente ser capazes de reunir novas forças para combater na região do Donbas, apesar de isso levar algum tempo, mas não serão capazes de mudar sua entorpecida cultura militar. Por este motivo, suponho que os ucranianos continuarão a vencer a guerra contanto que continuem a receber do Ocidente as armas e as munições que precisam. A arma secreta da Ucrânia é sua cultura militar superior. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*É COLUNISTA