Na China, queda da população é maior desafio com vida mais cara e falta de perspectiva

População encolheu pela primeira vez este ano desde 1961, em momento que recuperação econômica é lenta e com chineses em dúvida sobre o futuro

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Por Luiz Henrique Gomes
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ENVIADO ESPECIAL, DE PEQUIM – Perto do fim do jantar em um restaurante moderno em Pequim, a conversa descamba para os planos familiares para os próximos anos. Um brasileiro à mesa, funcionário de uma empresa de tecnologia e com 32 anos, fala em casar e ter filhos; uma chinesa um pouco mais velha, de 35 anos, advogada, mãe de um garoto de cinco anos, pensa um pouco antes de falar e diz: “Está tudo tão caro e a responsabilidade é tão grande, não acho que eu queira ter outro filho”.

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A frase sintetiza o pensamento de milhares de chinesas - e chineses -, que moram nas áreas urbanas da China atual. Morar em uma grande cidade como Pequim está cada vez mais caro, as responsabilidades maternas se somam às cargas altas de trabalho, às vezes autoimpostas, e o desejo de ter um segundo filho em um país que durante 37 anos incentivou o filho único despencou.

Este ano, a população do país encolheu pela primeira vez desde 1961. Para a sociedade chinesa, isso implica um problema futuro: se a tendência continuar, o país vai envelhecer rapidamente e sofrerá uma queda na sua força de trabalho à medida que os gastos de seguridade social com idosos devem crescer. E isso tende a agravar dificuldades econômicas atuais. “Se o direcionamento para a recuperação econômica em parte se baseia no aumento do consumo e da demanda ao nível doméstico, uma estrutura populacional formada por uma população economicamente ativa menor é um desconforto imediato para o planejamento estatal”, diz Aline Tedeschi, doutora em Relações Internacionais e Desenvolvimento e membro da organização de estudos Observa China.

Pai caminha com carrinho de bebê em um parque em Xangai, China, em imagem do dia 2 de abril. Taxa de natalidade caiu no país e levou a queda de popularidade Foto: Aly Song/Reuters

O governo chinês tem alterado políticas para os casais terem mais de um filho. Algumas envolvem mudanças estruturais, como regular horas de trabalho e diminuir custos da educação, saúde e moradia. Outras são direcionadas para impulsionar a formação familiar e vão de descontos para viagens turísticas de lua de mel a descontos em escolas. Até o momento, no entanto, elas ainda se mostram ineficazes.

Luo Ya, a advogada de 35 anos, conta que ao ter o primeiro filho, as responsabilidades em casa cresceram ao mesmo tempo em que a carga de trabalho foi mantida. Ela trabalha cerca de 48 horas semanais, uma média acima da carga horária máxima brasileira (44 horas semanais) estabelecida em lei, e precisa contar com ajuda dos pais para a criação do filho, já que seu marido também trabalha. “Mas meus pais estão ficando idosos, e eu também preciso ajudá-los”, contou à reportagem em uma entrevista posterior ao jantar em Pequim.

Segundo Luo Ya, sua empresa tem sido pressionada a diminuir a carga horário de trabalho dos funcionários, mas muitas vezes ela opta por permanecer no expediente para entregar projetos no tempo previsto. Trata-se do mesmo com o marido. Não raramente, os dois trabalham de 9h às 21h em dias de semana, afirmou.

Não se trata de um caso isolado. É cultural. O governo chinês combate desde 2021 o chamado sistema de trabalho “996″, que significa trabalhar de 9h às 21h em 6 dias por semana, mas diversas empresas e os próprios funcionários, sobretudo os veteranos, continuam com a prática. Em 2019, por exemplo, o empresário chinês Jack Ma, co-fundador da gigante de tecnologia Alibaba, elogiou a cultura de trabalho 996.

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Enraizada na sociedade chinesa, a cultura tem sido abandonada progressivamente pela juventude atual, que quer fugir da pressão do trabalho para ter mais tempo livre. Não significa, no entanto, o desejo de ter filhos, ao menos não durante essa fase. “Penso em ter filhos, mas primeiro quero obter sucesso profissional e ter a minha própria realização”, disse Su Mei, uma chinesa de 24 anos recém-formada em marketing.

Fenômeno generalizado e herança da política do filho único

Nos últimos anos, as questões profissionais foram fundamentais na decisão de ter ou não filhos em diversos países, não apenas na China. O mesmo fenômeno é visto em países como a Coreia do Sul, Cingapura e Japão, apenas para ficar em nações asiáticas. Segundo a ONU, a taxa de fecundidade (o número médio de filhos que cada mulher tem) está em queda no mundo. Em 2021, cada mulher dava à luz em média 2,3 bebês; em 1950, a média era de 5.

Na China, o encarecimento da vida, o desemprego em alta da juventude e as restrições vistas na pandemia, que alteraram o cotidiano de toda a sociedade chinesa, levam os casais a priorizarem uma vida mais estável antes da decisão de ter filhos. Isso acaba por fazer com que a geração adulta, nascida na década de 1980 e início da década de 1990, escolha ter filhos mais tardiamente que a geração de seus pais.

Em Pequim, por exemplo, o preço médio do metro quadrado nos dois primeiros meses deste ano estava em 10,5 mil yuans (R$ 7,16 mil). “Quando falo em ter a própria realização, significa ser casada, ter uma casa e um bom emprego”, acrescentou Su Mei, que nasceu em Pequim e mora com a família.

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O governo estuda reformar a educação pré-universitária para que essa estabilização seja alcançada o quanto antes, enquanto tenta estimular os setores econômicos para absorver jovens recém-formados. “É de extrema importância que isso ocorra para que a garantia de renda necessária aconteça mais cedo”, declarou Aline Tedeschi.

“Há preocupações gerais com a condição de grupos minoritários no mercado de trabalho pela pressão social que estas políticas de estímulo à natalidade podem gerar”, acrescentou a especialista. “Se as políticas não forem bem direcionadas, podem gerar um desestímulo ainda maior para a formação familiar e da taxa de natalidade.”

Na China, no entanto, especialistas destacam que a política de filho único, que vigorou até 2016, deixou marcas que tornam o desafio demográfico ainda maior. A jornalista americana Mei Fong, autora do livro One Child – The Past and Future of China’s Most Radical Experiment (Filho Único – O Passado e o Presente do Experimento Mais Radical da China), defende que o controle de natalidade é mais “fácil” quando precisa reduzir os nascimentos.

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Idosos trabalhando em um parque em Pequim, em imagem de 12 de agosto de 2022. Com menos pessoas em idade ativa, o governo chinês pode lutar para sustentar uma enorme população que está envelhecendo e vivendo mais  Foto: Gilles Sabrié/NYT

Com uma política que durou tanto tempo, ter apenas um filho ou nenhum filho na China é a norma social. Um artigo da Humans Right Watch escrito por Mei Fong com a pesquisadora Yaqiu Wang destaca que muitas mulheres são discriminadas nos locais de trabalho se desejam ter mais de um filho. “Desde o levantamento da política do filho único em 2016, muitas mulheres descreveram terem sido questionadas sobre sua condição fértil durante entrevistas de emprego, serem forçadas a assinar contratos se comprometendo a não engravidar ou serem rebaixadas ou demitidas por estarem grávidas”, diz o artigo.

Declínio não significa catástrofe na economia, dizem especialistas

Apesar do declínio demográfico significar uma queda na força de trabalho futura, especialistas acreditam que a China ainda tem caminhos para continuar crescendo no futuro. Três fatores são determinantes: o aumento da produtividade, uma reforma da previdência e mudanças no sistema hukou, um registro familiar que dificulta a mobilidade interna no país.

Considerado um país de renda média, especialistas concordam que a China, ao contrário de nações desenvolvidas, como o Japão, ainda pode aumentar a produtividade de sua indústria. “A China não alcançou o topo da produtividade, mas já tem isso planejado há anos e trabalha para isso”, declarou o pesquisador associado do centro de estudos Centro para a China e Globalização, Renato Peneluppi. Essa produtividade geral, argumenta, cresce à medida que o nível educacional do país se torna maior.

Em participação no Sinica Podcast, o diretor do Instituto do Leste Asiático da Universidade Nacional de Cingapura, Bert Hofman, defende que a China também pode melhorar o uso de sua mão de obra, com reformas do sistema hukou, que mantém muitas pessoas em áreas com pouca produtividade. “Usar melhor as pessoas no lugar onde elas são mais produtivas vai ser uma grande parte da ação política daqui para frente”, argumentou.

Hofman também defende reformas no sistema previdenciário para que a aposentadoria se dê mais tarde. Hoje, a idade mínima de aposentadoria é de 60 anos para homens e 55 para mulheres. A mudança está nos planos do governo desde 2021, quando o 14º Plano Quinquenal foi estabelecido. “Se você incentivar as pessoas a trabalharem por mais tempo estabelecendo a idade oficial de aposentadoria muito mais alta, e com incentivos financeiros a permanecer mais tempo na força de trabalho para construir um sistema de pensão, você pode estender (o tempo da força de trabalho)”, concluiu.

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