Na Rússia, mulheres criam movimento para protestar contra alistamento de homens

Protestos desafiam governo russo ao questionar necessidade de mobilização de soldados para a guerra na Ucrânia por tempo indefinido

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Por Neil MacFarquhar e Milana Mazaeva

THE NEW YORK TIMES – A mulher no vídeo com a cara borrada deu uma declaração franca a respeito das políticas do Exército russo: os soldados mobilizados mais de um ano atrás na Ucrânia merecem vir para casa; por que não vieram?

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“Nossos mobilizados tornaram-se o melhor Exército do mundo, mas isso não significa que esse Exército deveria ficar lá até o último homem”, afirmou ela. “Se ele fez algo heróico, derramou sangue por seu país sinceramente, então talvez seja a hora de retornar para sua casa, ser substituído por outro, mas isso não está acontecendo.”

A oradora faz parte de um novo movimento popular que tem ganhado tração na Rússia ao longo das últimas semanas. Mulheres de várias cidades estão buscando organizar protestos públicos em desafio ao argumento oficial de que os soldados mobilizados são necessários em combate indefinidamente para garantir a segurança da pátria.

Soldados recrutados russos na região de Moscou, em imagem de 28 de agosto de 2022. Novo movimento popular ganha força na Rússia com protestos de mulheres que questionam quando soldados retornarão para casa Foto: Nanna Heitmann / NYT

Pôsteres escritos a mão atrás de um alto-falante no vídeo ecoavam esse sentimento com slogans como, “Somente os mobilizados têm pátria?”. Um vídeo do discurso, pronunciado durante uma manifestação na cidade siberiana de Novosibirsk, em 19 de novembro, foi publicado online.

O movimento que emerge é um raro exemplo do descontentamento público com a guerra do tipo que o Kremlin tem buscado suprimir por meio de leis draconianas. As mulheres e as autoridades do governo se envolveram em uma dança delicada, com manifestantes tentando não afrontar essas leis ao mesmo tempo que as autoridades tentam evitar arrastar parentes de soldados na ativa para a prisão.

Até aqui as autoridades têm sido brandas, valendo-se de intimidações e convencimentos em vez de detenções ou prisões. Autorizações para manifestações foram negadas em várias grandes cidades, por exemplo, e mulheres têm reclamado de assédios em chats online.

Algumas disseram que policiais as visitaram em suas casas para questioná-las a respeito de suas atividades na internet e alertá-las sobre as consequências penais de comparecer a manifestações não autorizadas.

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Um dos principais meios de comunicação favoráveis ao movimento de protestos tem sido o canal no aplicativo de mensagens Telegram intitulado “Put Domoy” em russo, ou “O caminho de casa”, que atraiu mais de 14.650 participantes desde que foi fundado, em setembro.

Os organizadores do canal publicaram um manifesto pressionando para que soldados mobilizados possam voltar para casa após um ano na zona de combate. “Militares na ativa e suas famílias — unam-se e lutem por seus direitos”, afirma o manifesto.

Cartaz de recrutamento militar em ponto de ônibus de Moscou, em imagem de 28 de agosto de 2022. Cerca de 300 mil reservistas foram chamados pelo Exército russo em momento crítico da guerra Foto: Nanna Heitmann / NYT

As autoridades em Moscou e Krasnoiarsk, na Sibéria, rejeitaram pedidos recentes de autorizações para manifestações, citando como razão uma restrição a reuniões públicas criada para combater a covid-19. Em Moscou, cerca de 20 manifestantes levantaram cartazes com frases como “Não à mobilização indefinida” em um comício do Partido Comunista em 7 de novembro. A polícia retirou-as do local mas não prendeu ninguém.

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Maria Andreeva, que ajudou a organizar o protesto em Moscou, afirmou que o governo respondeu principalmente oferecendo mais dinheiro e benefícios para famílias de soldados. “Eles concordam em nos pagar mais, mas apenas se ficarmos caladas”, afirmou ela em entrevista. “Muitas mulheres precisam dos maridos e dos filhos, não de dinheiro.”

As pessoas que participam dos protestos em todo o país estão fartas, afirmou Andreeva. Ao mesmo tempo que se gaba por 410 mil homens terem assinado contratos para servir ao Exército este ano, o governo tem rejeitado pedidos de famílias para desmobilizar parte dos convocados em 2022.

Imagem de outubro deste ano mostra destroços de placa de entrada de Avdiivka, na Ucrânia. Milhares de soldados russos foram feridos ou mortos na cidade Foto: Nicole Tung / NYT

A manifestação em Novosibirsk, realizada por uma outra organização, foi resultado de um pacto de concessões mútuas entre organizadores e as autoridades locais. Em vez de ocorrer um protesto de rua, autoridades civis e militares se reuniram em um auditório do governo. A imprensa teve acesso negado, e participantes tinham de provar que possuíam algum parente servindo na Ucrânia.

Cheliabinsk, uma grande cidade russa no centro do país, organizou uma reunião parecida na Prefeitura.

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Em Novosibirsk, organizadores afirmaram que incontáveis mulheres em toda a Rússia estão “em ebulição” porque nenhum de seus apelos silenciosos e petições foi ouvido. “A situação nos levou e aos nossos parentes ao desespero, e os mobilizados a um nível crítico de fadiga, tanto física quanto moral”, afirmou o grupo em um comunicado.

Os grupos em protesto têm dificuldade para enfatizar que não são antipatriotas e que se esforçam para respeitar a lei. Afirmam que estão simplesmente pedido ao Kremlin que introduza rodízios de tropas.

Quando implementou o que classificou de “mobilização parcial”, em setembro de 2022, convocando 300 mil homens, o governo russo afirmou que os conscritos teriam de permanecer nas Forças Armadas até que Putin decidisse que eles poderiam ser dispensados.

Depois de já ter convocado uma mobilização, ordenar outra poderia ser politicamente impopular. Enquanto isso, dezenas de milhares de soldados russos têm sido mortos e feridos, incluindo muitos em ataques que realizam na Ucrânia, em lugares como Avdiivka.

Covas de soldados russos que foram mortos na invasão na Ucrânia, em imagem na região de Murmansk, na Rússia, no início deste mês Foto: Nanna Heitmann / NYT

A resposta oficial ao pedido por rodízio tem sido, na melhor das hipóteses, indireta. Organizadores dos protestos notaram que o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, deu uma declaração em dezembro afirmando que substituir os soldados mobilizados é uma razão para elevar o número geral de militares acionados.

Mas em setembro o presidente da comissão de defesa do Parlamento, Andrei Kartapolov, afirmou que não haverá nenhum rodízio para os soldados na Ucrânia, notando que, “Eles voltarão para casa após a conclusão da operação militar especial”. Uma petição com dezenas de milhares de assinaturas enviada ao Kremlin evocou uma resposta similar, afirmaram reportagens da imprensa russa.

“Nossos homens já estão cansados fisicamente e mentalmente de estar lá”, afirmou Andreeva. “Basta! Nós temos que agir!”

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Uma geração atrás, um movimento que uniu mães contrárias à guerra na Chechênia foi um fator significativo para convencer o Kremlin a pôr fim ao conflito. As autoridades têm tentado garantir que nenhum movimento nacional similar seja desencadeado pelos atuais protestos.

O assunto dos rodízios de soldados é delicado para Moscou, que busca fazer com que qualquer protesto permaneça uma questão regional e não se torne um movimento nacional que force Putin a reagir, afirmou Tatiana Stanovaia, que escreveu recentemente sobre o tema em sua newsletter de análises, R.Politik.

“O Ministério da Defesa está cauteloso, preferindo incrementar contingentes de soldados sempre que possível e mantê-los no front”, escreveu Stanovaia. Ela afirmou que qualquer decisão sobre alguma nova onda de mobilização “seria especialmente indesejável durante os preparativos da eleição presidencial do próximo ano”.

Em um seminário recente com foco na eleição presidencial marcada para março organizado na cidade de Senezh, próxima a Moscou, autoridades regionais receberam instruções específicas para evitar que o movimento de protesto das mulheres cresça, segundo reportagens da imprensa russa.

As autoridades afirmaram que uma manifestação pode servir de abertura para potências estrangeiras semearem caos, de acordo com o jornal de economia Kommersant, que apoia o Kremlin. Mas em um aceno para as frustrações dos manifestantes, a reportagem afirmou que as autoridades precisam permanecer em contato com as mulheres, dar atenção aos seus problemas e ajudá-las a resolvê-los.

Outro veículo de imprensa russo, o jornal online independente The Insider, citou uma autoridade regional não identificada afirmando que a estratégia preferida do Kremlin é “persuadir, prometer e pagar” para evitar que qualquer tipo de descontentamento seja expressado nas ruas.

Algumas participantes esperam que os protestos ocasionem questionamentos maiores sobre a guerra.

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Uma mulher no grupo de chat descreveu-se em mensagens de texto como manifestante de longa data em protestos antigoverno. Apesar de não ter nenhum parente lutando na Ucrânia, ela acredita que o movimento antimobilização das mulheres tem potencial verdadeiro para crescer.

Ao comunicar-se anonimamente para evitar acusações criminais por questionar a narrativa oficial da guerra, ela disse que espera semear discussões online com informações que retratem uma alternativa à rosácea imagem oficial da guerra, para “semear dúvidas a respeito da verdade das palavras de autoridades e do presidente (bem, ele mente o tempo todo)”. Ela afirmou que, levantando dúvidas, espera “que as pessoas comecem a fazer perguntas, interessar-se em política, interessar-se no que está acontecendo no país”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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