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Na Ucrânia, conheça o homem que traz de volta para casa os corpos das vítimas, um de cada vez

Oleksii Iukov diz a mesma coisa para todas as mães ucranianas: falem de seus filhos mortos para que eles sejam lembrados

Por Erika Kinetz (Associeted Press) e Solomiia Hera (Associeted Press)
Atualização:

DOVHENKE, Ucrânia (AP) — O cheiro dentro do carro é nauseabundo e doce, o odor sobrepujante de cadáveres que passaram tempo demais na lama ou sob escombros, de corpos que os cães não devoraram. O instrutor de artes marciais Oleksii Iukov, de 38 anos, que lidera uma equipe de coletores de cadáveres na Ucrânia, nem se incomoda.

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Ele está no telefone com uma das mães. Ela soube que seu filho tinha se ferido em batalha e sido deixado para trás, mas não tinha certeza onde. “Ele foi abandonado para morrer e agora eles me dizem que ‘Ele morreu como um herói?!”, afirma ela, engasgando-se em palavras e prantos.

“Não chore”, Iukov lhe diz. “Porque se você fraquejar, ninguém o ajudará… Não chore na frente de ninguém! Eles não merecem suas lágrimas. Chore apenas diante do túmulo do seu filho.”

“Nós traremos todos de volta”, promete ele. “Só precisamos de um pouco de tempo.”

Oleksii Yukov examina cadáver de soldado russo em Sloviansk.  Foto: Bram Janssen/ AP

Iukov diz a mesma coisa para todas as mães: falem de seus filhos mortos para que eles sejam lembrados. Há uma pessoa em particular cuja história Iukov não quer deixar ser esquecida: Oleksandr Romanovich Hrisiuk — Sasha para sua mãe, Olha.

Em uma enigmática mensagem de voz, no ano passado, Iukov pediu a Olha que lhe contasse a história de Sasha. “Não é todo mundo que tem uma história assim”, ele lhe disse.

Mas ele deixou de fora a parte mais importante: o que havia lhe custado para trazer Sasha para casa.

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Contando corpos

O verdadeiro custo da guerra na Ucrânia — e as ameaças enfrentadas de cada lado — pode ser medido em números de corpos.

Mais de meio milhão de pessoas foram mortas ou gravemente feridas em dois anos de guerra na Ucrânia, segundo estimativas de agências de inteligência ocidentais — um custo humano que não era visto na Europa desde a 2.ª Guerra. A dúvida a respeito de quem está vencendo é cada vez mais moldada pela capacidade que cada lado tem de suportar baixas maiores.

Segundo essa medida, Moscou leva vantagem.

Analistas afirmam que será difícil para a Ucrânia superar as forças russas — que continuam a crescer apesar das milhares de baixas — sem recursos significativos de seus parceiros internacionais. Mas o Congresso dos Estados Unidos não aprovou uma ajuda de US$ 60 bilhões à Ucrânia mesmo enquanto falta munição aos soldados na linha de frente.

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“Putin não governa uma democracia”, afirmou a ex-autoridade-sênior do Pentágono para Rússia e Ucrânia Evelyn Farkas, que atualmente dirige o Instituto McCain, na Universidade Estadual do Arizona. “Putin pode se permitir ser mais insensível e desconsiderar a contagem de corpos.”

O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, por outro lado, governa um sistema mais democrático, “onde a vontade do povo é realmente o componente mais forte de sua máquina de guerra”.

Em 2022, a Rússia tinha 3,7 vezes mais homens em idade de combate que a Ucrânia, de acordo com dados do Banco Mundial. Isso significa que, apesar da Rússia ter sofrido quase duas vezes mais baixas que a Ucrânia, de acordo com estimativas de agência de inteligência ocidentais, em uma base per capita as baixas russas seguem menores que as ucranianas.

Equipe de Oleksii Yukov coleta corpos de soldados russos na linha de frente na Ucrânia.  Foto: Bram Janssen/ AP

Nos índices atuais de recrutamento, o Kremlin é capaz de sustentar os atuais níveis de desgaste até o fim de 2025, de acordo com uma análise do Royal United Services Institute (RUSI), um centro de análise em Londres. Enquanto isso, a Ucrânia deu esta semana o difícil passo político de baixar a idade de conscrição de 27 anos para 25, em um esforço para repor seu efetivo.

“Os contingentes são outra moeda”, afirmou o pesquisador do RUSI Nick Reynolds. “Os russos, com sua base industrial e efetivos maiores, podem gastar contingente e equipamentos sob um custo menor.”

Iukov entende que para muitas pessoas de países distantes a guerra é geopolítica, a morte pode ser contabilizada em números e o dinheiro é mais importante que os homens. Mas ele conhece o assunto melhor.

“A guerra tem três caras”, afirmou ele. “Morte, estupidez e horror.”

‘Deus leva os melhores embora’

Da última vez que Olha Hrisiuk falou com seu filho, ele lhe perguntou a respeito das colheitas de primavera, da horta, de seus cavalos e vacas — as galinhas estavam pondo bastante ovos? A conversa seguiu como se eles tivessem todo o tempo do mundo. Era 15 de maio de 2022.

Sasha desapareceu no dia seguinte.

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Por três dias, nada além de silêncio. Olha aceitou, porque Sasha tinha lhe dito que sairia em uma missão e ficaria sem contato.

No quarto dia, ela telefonou para o prefeito de seu vilarejo, que telefonou para o posto militar mais próximo, que entrou em contato com a unidade militar de Sasha, que informou que ele havia desaparecido

Sasha não era um combatente nato. Atleta, ele tinha estudado fisioterapia antes de ser recrutado e partir para a guerra, em 3 de abril de 2022. Olha lhe deu uma corrente com um crucifixo de prata para ele pendurar no pescoço quando fosse para a batalha.

Ela se perguntava onde estava seu filho, o menino de sorriso doce e orelhas de abano, que adorava correr e tinha tantos amigos que ela perdia a conta. Onde estava seu filho, que sonhava em construir uma casa para a família que ainda não tinha?

Oleksii Yukov e sua equipe na linha de frente na Ucrânia, em Sloviansk.  Foto: Bram Janssen/ AP

“Na Ucrânia, nós temos um ditado: ‘Deus leva os melhores embora’”, afirmou Olha. “Acho que foi isso.”

Depois de buscar informações nas redes sociais, a nora de Olha conseguiu conversar diretamente com alguns soldados da unidade de Sasha.

Eles disseram que Sasha estava morto. Lamentaram muito por não ter conseguido trazer de volta o corpo, o bombardeio estava pesado demais, mas só tinham conseguido escondê-lo em um porão em Dovhenke — uma localidade rural no leste da Ucrânia tomada pelos russos. Eles disseram que escreveriam o nome dele nos projéteis que disparariam porque também o amavam. Ele foi um herói, afirmaram.

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Sasha, de 27 anos, durou exatamente seis semanas na guerra. Era hora de voltar para casa. Se não pudesse ter seu filho inteiro de volta, Olha buscaria qualquer pedaço que tivesse restado.

Mas como?

Olha começou a fazer telefonemas, tantos que teve de comprar um caderno de anotações para não se perder. Ela disse que ligou para a Cruz Vermelha ucraniana, para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, para o Escritório Nacional de Informação da Ucrânia, para as Forças Armadas ucranianas, para a Central de Coordenação de Tratamento para Prisioneiros de Guerra e para todos os números de emergência e grupos de voluntários que conseguiu encontrar. Ela mandou e-mail para o Comissariado de Direitos Humanos e cartas para o Ministério da Defesa e até para o próprio presidente  Zelenski.

Olha anotou quem respondeu, quem não e, principalmente, quem lhe disse para esperar, esperar e esperar um pouco mais. Por seis meses, ela tentou.

“Eu simplesmente não conseguia viver sem tentar”, afirmou ela. “Como é possível não ver nem os ossos de seu filho?! Eu estava pronta até para ir eu mesma a Dovhenke!”

No fim, disseram-lhe que se a Tulipa Negra não conseguisse trazer Sasha para casa, ninguém conseguiria.

Oleksii Yukov inspeciona cordão de soldado russo morto. Foto: Bram Janssen/ AP

‘Nós temos de ser enterrados’

Tulipa Negra é o nome da rede de coletores de corpos voluntários na qual Iukov trabalhou em 2014, quando a Rússia tomou a Crimeia e começou a pressionar o leste da Ucrânia. Desde então o grupo se desmantelou, mas o nome ficou. Iukov fundou sua própria rede, a Platsdarm, um termo que pode ser traduzido como “cabeça de ponte”, para continuar a missão da Tulipa Negra.

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O trabalho de Iukov é trazer todos de volta. Ele recolheu os fragmentos de um homem fincados em galhos de árvores, juntou os pedaços e entregou para sua mãe. Ele retirou pedaços de corpos chamuscados de um helicóptero incendiado. Em certa ocasião, uma mãe lhe pediu por favor para recuperar o braço de seu filho, que lhe disseram que estava pendurado em uma árvore em particular; ele recuperou. Ele revolveu fezes para recolher ossos de dedos e dentes de homens cujos cadáveres tinham sido devorados por porcos.

“Veja, se fosse o seu filho que tivesse morrido, você meteria a mão nessa m… para enterrá-lo”, afirmou ele.

Iukov corre contra o tempo, que consome cadáveres, para trazer todas as almas para casa. Mas há corpos demais. Ele não consegue carregar todos em seu carro nem se os amarrar no teto ou carregá-los nos braços. Há corpos demais.

“Às vezes eu só quero gritar. Berrar. Porque você se dá conta da loucura e da dor disso tudo”, afirmou ele. “Eu compreendo que não tenho vida suficiente para terminar esse trabalho de encontrar os mortos.”

A trajetória de Iukov se confunde com a história das terras de sangue ucranianas, uma paisagem transformada por gerações de conflitos. Ele cresceu com frio e faminto em Sloviansk, no leste da Ucrânia, criado com quatro irmãos. Eles resistiram a um inverno comendo as ervilhas secas do saco de pancadas de um dos irmãos. Iukov aprendeu a compartilhar mesmo que o pão que tivesse fosse o último que lhe restasse.

Equipe de Oleksii Yukov coloca corpos de soldados russos em caminhão.  Foto: Bram Janssen/ AP

Quando tinha mais ou menos 6 anos, um cemitério local foi removido para abrir o terreno para um novo hospital infantil. Tratores escavaram pilhas de roupas e ossos; as crianças corriam de um lado para o outro com crânios na ponta de bastões.

Iukov ficou chocado e envergonhado quando parou diante de um corpo desenterrado. “Eu olhei para os ossos e pensei, ‘Nossa… são pessoas!’”, recordou-se. “E se parentes meus estivessem enterrados aí?”

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O chão das florestas da infância de Iukov estava repleto de ossos de soldados alemães e soviéticos que morreram na 2.ª Guerra, em alguns lugares tão densamente que os ossos pareciam neve.

Iukov começou a procurar mortos aos 13 anos, mas no começo cometeu erros. As almas que ele ofendeu — ou não conseguiu encontrar — o assombraram. Ele as sentia cutucando suas costelas e acordava tonto, com o nariz sangrando.

“Por que vocês continuam aparecendo”, Iukov quis saber de seus fantasmas. “O que vocês precisam?”

Quando era menino, Iukov sonhou que corria numa floresta, saltando sobre valas e trincheiras até que tropeçava e caía em um buraco, despencando profundamente em meio a uma luz avermelhada. Ele sentia o cheiro dos corpos antes de vê-los, seus pés esbarravam em ossos conforme ele afundava.

“E alguém me agarrou pelo pescoço e sussurrou no meu ouvido, ‘Nós temos que ser enterrados’”, recordou-se ele.

Iukov acordou encharcado de suor. E entendeu qual era a sua missão.

“Enquanto eles não são enterrados de acordo com suas tradições e rituais, suas almas sofrem. Então é muito importante para mim, mesmo se for um inimigo, devolvê-lo à sua casa para ser enterrado apropriadamente, para que sua alma se acalme”, afirmou Iukov. “As pessoas nos chamam de ‘coletores de almas’.”

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Estrada que leva a linha de frente em Sloviansk, Ucrânia.  Foto: Bram Janssen/ AP

Clique fatídico

No fim do verão de 2022, Olha e seu outro filho entraram em contato com Iukov em busca de ajuda. Eles mandaram fotos de Sasha e de sua tatuagem, assim como imagens de satélite de sua localização aproximada.

Iukov chegou a Dovhenke em setembro, pouco depois dos russos saírem. Mais de 90% dos edifícios tinham sido destruídos ou danificados, e era difícil localizar o porão em que a unidade de Sasha afirmou ter lhe deixado. Além disso, havia minas.

Eles passaram dias procurando. Em 19 de setembro, Iukov deu um passo e ouviu um clique. A força da explosão o derrubou.

“Eu estava lá caído e não sentia minhas pernas”, afirmou Iukov. “Pensei, ‘Beleza, vou arrumar umas próteses’. (…) Mas vi buracos nas minhas pernas e sangue espirrando; e pensei, ‘OK, minhas pernas estão aí’. Mas de repente eu não conseguia ver com um dos olhos; eu tinha perdido um olho.”

Sua equipe veio correndo para socorrê-lo, gritando. Iukov respondeu, “PAREM! NÃO CORRAM! FIQUEM ONDE ESTÃO!”, preocupado com a possibilidade deles também pisarem em minas. “Tragam torniquetes e uma maca!”

Iukov foi levado ao hospital rapidamente. Todos estavam em silêncio no carro da equipe, seu cachorro ofegava mais forte que o ganido do motor acelerando. Iukov estava deitado no banco de trás, com as pernas amarradas com torniquetes. Cautelosamente, ele tocou o pano ensanguentado sobre o buraco onde seu olho direito ficava.

Duas semanas depois, Iukov levou o grupo novamente a Dovhenke, com um tapa-olho de pirata e andando de muletas para tentar encontrar Sasha. Mas o local ainda estava perigoso demais, e eles tiveram de esperar algumas semanas até que as minas fossem desativadas. Depois da desminagem, Iukov tinha um novo olho, de vidro, que parece incrivelmente real até que ele o golpeia com os dedos.

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Quando eles finalmente voltaram para Dovhenke para procurar Sasha, um pequeno gato cinzento com um ferimento no focinho não parava de saltar sobre os ombros de Iukov, tentando se aconchegar nele. O gato circulou um ponto nos escombros. E os homens começaram a cavar.

“As almas se aproximam e ficam entre nós”, explicou Iukov. “Um sinal veio nos mostrar onde ele jazia. Ele queria voltar para casa, sua mãe estava esperando.”

Sasha acabou esmagado sob os escombros de um edifício que ruiu. O lugar estava arrasado. Havia fragmentos de morteiros de 120 milímetros e sinais de uma explosão massiva.

Na hora que eles atravessaram as últimas camadas de concreto, tinha escurecido. Denis Sosnenko, de 21 anos, que treinava kickboxing com Iukov, entrou no buraco para revolver a terra com os dedos, à procura de ossos.

Iukov disse para Denis tentar manter unidos os fragmentos da cabeça de Sasha dentro do que havia restado de seu capacete. Ele entregou parte do crânio de Sasha, úmido e amarelado, para Iukov, que o colocou gentilmente em um grande saco branco. Foi difícil encontrar todos os pedaços porque estava muito escuro, e eles trabalhavam com lanternas.

Denis retirou da terra um crucifixo e o guardou, depois uma colher e um relógio.

Iukov continuou o trabalho fazendo um inventário anatômico aproximado do que havia restado de Sasha. Um braço. A espinha dorsal. A pelve. Um fêmur. Um cotovelo.

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“Espere”, afirmou Iukov. “Onde está o outro braço e escápula?”

Era 25 de novembro de 2022. Dois meses depois, Denis passou de carro sobre uma mina terrestre enquanto procurava corpos e morreu.

11 russos e uma perna

Como na maioria das guerras, ambos os lados têm minimizado ou ocultado suas baixas, e o número verdadeiro pode não ser conhecido por anos. Mas vistas do céu as multidões de mortos já transformam a paisagem. Os túmulos de ambos os lados do front são parecidos: campos anteriormente vazios agora forrados por mosaicos de novas sepulturas.

O presidente Zelenski disse recentemente que 31 mil soldados ucranianos foram mortos na guerra, menos da metade do número estimado por agências de inteligência ocidentais. Estima-se que o número de baixas russas seja aproximadamente o dobro em comparação às baixas ucranianas.

Usando imagens de satélite e visitas presenciais, a Associated Press documentou o rápido crescimento na quantidade de túmulos de soldados em alguns pontos na Rússia e na Ucrânia em que os mortos na guerra acumularam-se em escala.

Até março, mais de 650 soldados jaziam em covas em um terreno nas imediações de Lviv que era um campo aberto dois anos atrás, e havia mais de 800 túmulos novos de soldados em um cemitério de Kiev. Cerca de 700 sepulturas apareceram em duas parcelas destinadas a soldados em um cemitério de Kharkiv entre fevereiro de 2022 e setembro de 2023, mostram imagens de satélite. A AP também contou pelo menos 1.345 túmulos novos de soldados em um cemitério de Dnipro em março, ao lado de seis corredores paralelos de covas abertas à espera de corpos.

Muito mais mortos estão espalhados pela Ucrânia e pela Rússia incrustados discretamente entre túmulos de civis.

O meio de imprensa independente russo Mediazona identificou as localizações de dezenas de cemitérios russos que aumentaram com os mortos da guerra. Juntamente com o serviço da BBC na Rússia e uma rede de voluntários, a investigação confirmou as mortes de 50 mil soldados russos desde o início da invasão em escala total, um número que os jornalistas afirmam corresponder provavelmente a pouco mais da metade do total de mortos. A contagem não inclui combatentes que lutam pela Rússia em territórios ocupados na Ucrânia.

Imagens de satélite da Maxar Technologies mostram aumento dos crematórios na Capela Wagner, Rússia.  Foto: Maxar Technologies/ AP

É impossível esconder os mortos dos satélites. Imagens captadas por satélites mostram mais de 750 túmulos no Cemitério Wagner, em Bakinskaia, uma cidade próxima ao Mar Negro — em janeiro de 2023 havia cerca de 170. A aproximadamente 15 quilômetros de lá, estimados 2.646 compartimentos para cinzas de corpos cremados foram construídos formando novos corredores cinza-escuros na Capela Wagner, mas não foi possível constatar quantos nichos estavam ocupados. O número de mortos na guerra enterrados no Cemitério Memorial Federal das Forças Armadas, ao norte de Moscou, triplicou no ano passado, para estimados 846 túmulos.

Esses são os mortos com sorte, que conseguiram voltar para casa. Iukov afirma que coletou mais de mil corpos desde que a invasão em escala total começou, dois anos atrás; mais da metade, de russos.

“Nós não estamos combatendo os mortos”, afirmou ele. “Eu não faço distinção entre corpos de soldados russos e soldados ucranianos. Para mim, todos são almas.”

Certa noite em outubro, Iukov retornou de uma missão nas proximidades de Sloviansk com sacos pretos de corpos amarrados ao teto de seu carro. Os buracos na estrada os sacudiam perigosamente conforme ele acelerava para entregar os cadáveres a um necrotério.

A contagem naquele dia foi de 11 russos e uma perna, provavelmente ucraniana, a julgar por sua bota. Seus ferimentos seriam documentados. Os itens que eles carregavam — amuletos que não funcionaram, desenhos de crianças, fotos de família, cartas de amor e desespero — seriam coletados e catalogados. Seu DNA seria testado, se necessário, e suas identidades, inseridas em bancos de dados do governo.

Os ucranianos, Iukov tinha esperança, encontrariam seu caminho de casa. Os russos virariam moeda de troca nas barganhas periódicas por mortos na guerra.

“Quando alguém diz, ‘Estou cansado da guerra’, eu respondo ‘Sim, todos estamos cansados’”, afirmou Iukov. “Mas nós precisamos que você compreenda e nos ajude, se envolva. Porque a guerra não tem fronteiras. A guerra também baterá à sua porta.”

Ele espiou dentro de um saco de corpos. Os cadáveres tinham assado sob o sol, e a carne de seus rostos tinha se mumificado parcialmente. Iukov imaginou que eles estavam mortos há cerca de três meses.

Iukov enfureceu-se subitamente e começou a falar russo agitadamente. “Você carregou esta criança em seu útero”, afirmou ele, “agora seus filhos russos jazem aqui, em solo ucraniano. Porque você deixou eles virem pra cá? Você sabia de tudo isso, que eles viriam matar e ser mortos.”

Iukov olhou para os corpos estirados sobre a grama na escuridão da noite. “É aqui que tudo isso acaba”, afirmou ele.

Ele deu as costas para os cadáveres e um pequeno sorriso lhe escapuliu, então parou de falar e balançou negativamente a cabeça, em silêncio. “Portanto, sei lá. É tudo uma grande estupidez.”

Caminhão frigorífico com bandeira da Ucrânia usado por Oleksii Yukov e sua equipe.  Foto: Bram Janssen/ AP

Segurando os céus

Olha teve esperança por muito tempo que desaparecido significasse vivo. Mas quando Iukov mandou-lhe uma foto da corrente que tinha encontrado no porão em Dovhenke, Olha reconheceu-a imediatamente. Era o mesmo crucifixo de prata que ela tinha dado a  Sasha quando ele partiu para a guerra, mas agora fora classificado como a evidência número 3118, uma prova de morte coberta de lama.

Olha não voltou a ver o rosto do filho. Quando ela recebeu o corpo de volta, Sasha não tinha mais rosto. Isso é difícil para ela, porque lhe permite nutrir uma tênue e dolorosa esperança de que possa ter havido algum erro.

Iukov destrói a esperança de muitas mães. Mas elas o agradecem mesmo assim.

“Alegro-me por termos conseguido”, escreveu Iukov para Olha em uma mensagem de texto depois de encontrar Sasha. “Sinta o nosso abraço. Espero que possamos nos encontrar para você nos contar mais a respeito dele. Junto com você, nós estamos segurando os céus.”

“Seu trabalho é inestimável”, respondeu ela.

Olha enterrou o que restou de Sasha em 16 de março de 2023 no cemitério de seu vilarejo, sob uma cruz coberta de flores e fitas.

“Para mim é muito importante saber que seu corpo está por perto”, afirmou Olha. “Todos nós esperamos a vitória. Para mim é a coisa mais importante. Se não vencermos, por que meu filho e os filhos de tantas outras terão morrido?”

Iukov não disse a Olha que perdeu um olho tentando encontrar seu filho. Quando soube o que tinha acontecido, ela assentiu com a cabeça sutilmente e sua cara se fechou numa expressão de tristeza profunda.

“Eu não consigo expressar com palavras o tamanho da minha gratidão”, afirmou ela. Olha abriu as mãos e olhou para cima, buscando maneiras de exprimir a enormidade de sua perda. “Estou tão chocada. (…) Lembrarei até o último dia da minha vida o sacrifício que ele fez por mim e minha família.”

Olha visita o túmulo de Sasha todos os dias, fala com o filho e reza por ele — e talvez algum dia encontre a paz consigo mesma.

“Não importa o que as pessoas digam, eu sei que Sasha queria voltar para casa”, afirmou Olha. “Às vezes eu assisto TV, vejo a internet, o TikTok, o que for e penso: é isso, nós perdemos. E sinto vontade de desistir. (…) Mas quando assisto aos vídeos de Oleksii (Iukov), me dá vontade de continuar ajudando. Enquanto existir alguém como  Oleksii, nada estará perdido na Ucrânia.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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